Diante do racismo velado, pretos e pretas buscam estratégias pessoais para se proteger. É como se a gente fosse se esgueirando, com cuidado, para não encostar numa cerca de arame farpado. O estagiário de TI Lucas Oliveira, de 21 anos, por exemplo, não usa capuz ou touca nas compras e sempre vai direto na prateleira onde está o produto de que precisa. “Se eu ficar circulando pela loja, tenho certeza que um segurança vai aparercer”, conta o morador da Penha, zona leste. Pesquisa qualitativa nacional realizada pelo Instituto Locomotiva no ano passado mostra que sete em cada dez negros já passaram pelo drama de Lucas.
Esses rituais particulares nos protegem, mas não atacam frontalmente o problema. Especialistas, vítimas e não vítimas dão dicas e orientações para agirmos contra o racismo velado.
1. Crie filhos antirracistas: Para Michelle Levy, CEO e cofundadora da consultoria Filhos no Currículo, especializada na criação de políticas parentais, é importante criar filhos com uma visão antirracista desde cedo. “Tratar o assunto com músicas, livros, filmes ou uma história antes de dormir vai permear o imaginário dos nossos filhos, principalmente até os 6 anos”, opina a especialista.
Humberto Baltar, palestrante e fundador do coletivo Pais Pretos Presentes, rede de apoio para educar pessoas pretas, frisa a relevância de criar filhos NA diversidade e não PARA a diversidade. “É comum aos pais abordar o racismo apenas quando a criança presenciou alguma situação de preconceito, mas o caminho seria estimular a conversa no dia a dia”, afirma.
2. Olhe como a escola trata o tema. Nesse contexto, as escolas têm papel central. Verifique se a escola do seu filho possui temáticas étnico-raciais e de diversidade na grade escolar e na proposta pedagógica, sobretudo sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana que não sejam apenas a escravidão. É importante mostrar pessoas pretas em posição de protagonismo.
Vale lembrar que a Lei 10.639/03, de 2003, estabelece obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira” nas disciplinas dos ensinos fundamental e médio, oficiais e particulares.
3. Procure conteúdos antirracistas no seu trabalho. Pesquise se a empresa possui programas de letramento racial ou um comitê de diversidade. Existem cartilhas que promovem a inclusão? Se você ocupa posição de direção, pense na composição da equipe: qual é a proporção entre negros e brancos entre os colaboradores. “Os colaboradores podem recorrer aos superiores e perguntar, por exemplo, por que não existem pessoas pretas nas ações de comunicação da empresa”, opina Humberto Baltar.
4. Você tem amigos pretos? Preste atenção se você tem amigos e amigas pretas na faculdade, no trabalho ou no condomínio. Se for possível, converse com ele sobre as diferenças na forma em que brancos e pretos são tratados. Isso vale também para seus filhos e os amigos dele. A tentativa é de se colocar no lugar do outro e procurar ouvi-lo.
5. Compartilhe experiências com os negros. Fundador e CEO da Empodera, startup que prepara as empresas para uma cultura inclusiva, Leizer Pereira recomenda a troca de experiências como uma estratégia contra o racismo. Uma das atividades que a consultoria oferece para o mercado corporativo são rodas de conversa entre pretos e não pretos sobre situações cotidianas onde o racismo pode aparecer, como andar no shopping e ir ao restaurante. “Isso gera empatia”, avalia.
6. Denuncie quando achar necessário. O professor Dennis Oliveira, da USP, afirma que mesmo o racismo velado deve ser denunciado. “A melhor forma de combater o racismo velado é tipificá-lo e torná-lo explícito. O incômodo da denúncia leva à reflexão”, diz. Reconhecer o racismo é a melhor forma de combatê-lo. A filósofa Djamila Ribeiro escreve em seu Pequeno Manual Antirracista: “Não tenha medo das palavras ‘branco’, ‘negro’, ‘racista’. Dizer que uma atitude é racista é definir seu sentido e suas implicações”.
7. Cuidado com o vocabulário. O racismo velado é tão presente que pode passar despercebido. As pessoas usam a palavra “negão” com naturalidade, mas dificilmente usam “brancão”. Muitas vezes, nós reproduzimos termos racistas ou que reforçam estereótipos. Evite expressões como “a coisa está preta”, “cabelo ruim”, “denegrir”, “lista negra”, “até tenho amigos que são pretos”, usada diante de um comportamento racista. Troque escravos, que mostra passividade, por pessoas escravizadas (processo contra a vontade) e escravidão por escravização.
8. Leia autores negros. Se você quiser saber mais sobre a luta antirracista, leia autores negros. Obras como Racismo Estrutural, de Silvio de Almeida, Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro, A Empresa Antirracista, de Maurício Pestana, e Torto Arado, de Itamar Vieira Jr, são muito importantes para aprofundar essa discussão.
9. Estimule uma cultura antirracista. Quando assistir a uma filme ou a uma novela, reflita sobre a presença ou não de atrizes e atores negros. Vale o mesmo para exposições artísticas, festas literárias, concertos e shows. Discuta isso com os amigos.
10. Apoie as ações afirmativas. Ações afirmativas são políticas temporárias que destinam recursos para grupos discriminados no passado e no presente. São medidas para aumentar a participação de grupos excluídos ou vulnerabilizados, facilitando o acesso à educação, saúde e emprego. As cotas, ou a reserva de vagas para ingresso nas universidades e em cargos públicos, são exemplos de ações afirmativas para combate ao racismo.
11. Pergunte para você mesmo: o que tenho feito e o que posso fazer na luta antirracista? O que você faz ao ouvir uma piada racista? Entender a importância do que você faz, questionar e duvidar do que parece natural são atitudes importantes para evitar a reprodução do racismo. Esta não é uma conversa individual, mas estrutural. Um problema estrutural e multifatorial como o racismo exige uma resposta com as mesmas características, envolvendo as famílias, escolas e as empresas e cada um de nós.
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