Dia da Consciência Negra: ‘Só olham a mulher preta pela aparência, não veem sua luta’

Casos como o da enfermeira aposentada Renilda Aparecida têm relação direta com estereótipos; a passista Alessandra Vania sofre com a objetificação do corpo das mulheres negras

PUBLICIDADE

Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

A enfermeira aposentada Renilda Aparecida estava preparando o almoço quando tocou a campainha de sua casa em Tremembé, região do Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Quando chegou no portão, a senhora de 68 anos ouviu: “A senhora pode chamar a patroa?”. Cida, como é conhecida, é a dona da casa.

O racismo velado tem relação direta com estereótipos, ou seja, com espaços e posições que os pretos e pretas deveriam ocupar na sociedade. Estão nessa gama funções como motoristas, empregadas domésticas, profissionais de segurança, além de jogadores de futebol e músicos. Não há demérito nessas profissões, não se questiona sua dignidade, o problema é reduzir os pretos a determinados estereótipos. Raramente, somos confundidos com um médico ou o diretor da empresa, por exemplo. “Eu fechei a cara e disse ‘a patroa sou eu’. Nem perguntei o que eles queriam”, conta Dona Cida, servidora pública na área da Saúde por 34 anos.

A passista Alessandra Vania durante apresentação no Bar Brahma, zona central de Sao Paulo Foto: Taba Benedicto/Estadão

PUBLICIDADE

Quase todo preto tem uma história para contar sobre isso. Também tenho minhas tristes memórias. Durante a pré-temporada de treinos do Corinthians, em um resort de luxo no interior de São Paulo, anos atrás, eu ligava o notebook numa área comum do hotel. Um hóspede perguntou que horas começaria o pagode. Eu sorri e disse que não era músico, mas jornalista. “Ah”, disse o senhor branco de uns 50 anos, sem se desculpar.

Essa “confusão” acontece também com José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares. Ele conta c. Sempre que chega com seu Ford Fusion preto, pedem que ele estacione o carro mais adiante. Situação semelhante foi vivida pelo ex-ministro da Igualdade Racial, Eloi Araújo. Durante um passeio com a família em Petrópolis (RJ), ele estacionou o carro e ficou esperando o retorno da filha e da mulher. Aí, ele ouviu: “Você pode estacionar meu carro?” Aborrecido, ele respondeu na mesma moeda. “Eu já deixei meu carro no estacionamento. Mas não sei se você vai poder deixar lá porque o lugar é caro.”

Publicidade

José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, conta que dificilmente é recebido como professor nos eventos. Foto: Daniel Teixeira/Estadão - 16/11/2021

Objetificação

Mulheres negras sofrem ainda com a objetificação do corpo. No imaginário coletivo brasileiro, perpassa a ideia de erotização e de que estariam mais abertas às experiências sexuais. É um preconceito histórico, herança do período de escravização. Entre os exemplos mais recentes da hipersexualização estão as “mulatas do Sargentelli”, dançarinas que se apresentavam com o radialista Osvaldo Sargentelli na década de 1970. Ou a dançarina da Rede Globo que apresentava a cobertura do carnaval chamada Globeleza – a personagem passou por uma profunda transformação a partir de 2017.

Esse preconceito gera violência. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre violência de gênero durante a pandemia mostram que as mulheres pretas e pardas foram as principais vítimas do assédio sexual no Brasil. Em 2021, 52,2% das mulheres pretas foram vítimas, índice superior aos 40,6% entre as mulheres pardas e dos 30% entre as mulheres brancas.

A passista Alessandra Vania é destaque da escola de samba Rosas de Ouro Foto: Taba Benedicto/Estadão

Destaque da escola de samba Rosas de Ouro, Alessandra Vania convive e ressignifica esses olhares. Ela combina o papel de musa com o de educadora – ela é professora do Ensino Infantil há nove anos e também dá aulas de dança. Além disso, a passista de 35 anos é mãe da Ana Claudia, de 6 anos. “Ainda existe esse estereótipo da sensualidade. A mulher negra é vista principalmente pela questão estética. Eles não olham a mulher como uma pessoa bonita que luta, estuda e trabalha”, conta.

Nesse contexto de múltiplos papéis, seu cabelo virou um símbolo de afirmação. O cabelo carrega em si alguns tabus em uma cultura que valoriza traços e aspectos brancos e eurocêntricos. Na semana passada, ela contou que recebeu olhares de desaprovação em um tradicional restaurante italiano de São Paulo. Ela acredita que tenha sido, em grande parte, por causa de seu cabelo afro – ela era a única negra no local. “Os olhares não me diminuem. Quanto mais eles me olham, mais minha autoestima se eleva. Mas é uma afirmação e uma luta a cada dia”, diz Alessandra.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.