Cena 2: São Paulo. No último dia 7 de novembro, de olhos arregalados, com a bandeira do Brasil sobre os ombros, uma cruz em punho e um rosário enrolado no pulso, um homem protestava, diante de um boneco em chamas, contra a presença da filósofa norte-americana Judith Butler, no Sesc Pompeia. "Queimem a bruxa", gritava.
Cena 3: Varsóvia. No dia 11 de novembro, em meio às comemorações pelo aniversário da independência da Polônia, cerca de 60 mil pessoas marcharam pela cidade, entoando cânticos ufanistas, supremacistas e antissemitas, ao mesmo tempo em que clamavam por um país branco e uma comunidade de nações europeias formada por cristãos brancos. Tudo isso sob o lema "Queremos a Deus".
Decorrentes da intolerância, todas essas são cenas de violência. Num caso, pretende-se a destruição de um grupo social; no outro, a censura de ideias; no terceiro, a exclusão do estrangeiro e a exaltação do nacional. O que torna possível esse festival de agressividade praticada por cristãos, em nome de Jesus Cristo? Não deveria a religião desestimular as ações violentas, em vez de alimentá-las?
O cristianismo comporta duas dimensões: de um lado, existe a dimensão do fantástico, do mundo mágico, onde cobras falam, virgens dão à luz, mortos ressuscitam e santos fazem milagres. De outro lado, porém, o mesmo cristianismo pode operar numa dimensão menos fantasiosa e mais fincada na realidade, no dia a dia das pessoas, quando elas se veem desafiadas por toda sorte de problemas que demandam atitudes, em especial, que demandam perdão ou tolerância. Perdoar aquele que se arrepende; tolerar aquele que, não tendo do que se arrepender, é simplesmente diferente, e talvez sequer acredite em Jesus Cristo, eis o desafio lançado pelo cristianismo.
Não se trata de tarefa simples, pois toda tentativa de tolerar esbarra nos "limites da tolerância" (Rainer Forst), que não raro são imprecisos: nem tudo pode ser tolerado, pois uma tolerância generalizada resultaria na tolerância da intolerância e, portanto, na sua autodestruição. Se for assim, como então determinar a fronteira entre o aceitável e o inaceitável? Deve-se tolerar alguma violência ou, mesmo em caso de agressão, será melhor oferecer a outra face, em vez de revidar, como propôs Jesus?
Ghandi, que não era cristão, mostrou ser possível não revidar e resistir pacificamente. Entre os cristãos, no entanto, e as três cenas acima ilustram-no muito bem, a violência faz parte do repertório daqueles que simplificam o mundo, dividindo as pessoas em boas e más e interpretando os textos bíblicos no sentido que mais convém aos seus preconceitos e às suas atitudes agressivas. Presos à dimensão fantasiosa da religião, muitos, além dessa violência contra o outro, praticam também autoflagelação, sobem escadas de joelho e se aplicam castigos. Existe um certo culto ao sofrimento, e, nesse sofrer, não falta quem padeça exemplarmente, cumprindo com maestria o que parece um ritual masoquista que levará ao êxtase.
Mas a cristandade fracassa na outra dimensão do cristianismo, no momento em que se lhe apresenta a oportunidade de assumir e enfrentar os desafios lançados pela religião: o perdão e a tolerância. Quantos cristãos são capazes de, efetivamente, perdoar, não no sentido de reprimir mágoas, mas no de simplesmente não as ter? Quantos são capazes de, agredidos numa face, possuir a grandeza moral de oferecer a outra? Quantos são capazes de, ao menos, tolerar, se não for possível reconhecer como valorosos os grupos sociais formados por pessoas que levam estilos de vida distintos?
Talvez poucos, muito poucos. As cenas resumidas no início deste artigo sintetizam as atitudes de uma cristandade que vive num mundo de fantasia, comportando-se como criança mimada e agressiva - e não como adulto que tem diante de si o desafio imposto pelo perdão e pela não-violência e os sacrifícios que isso implica: afinal, perdoar pode não ser fácil, mágoas podem persistir, e oferecer a outra face exige rara coragem. Muitos cristãos simplesmente ignoram tudo isso, preferem subir escadarias de joelho, carregar cruzes de um lado a outro, quando não desfazer-se do próprio patrimônio em benefício de suas igrejas. O sacrifício do autoflagelo egoísta é mais importante do que o sacrifício altruísta exigido pelo perdão e pela tolerância: muitos cultivam a culpa, "minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa", mas não se sentem culpados pela sorte daqueles que discriminam.
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