Historicamente atacado, o carnaval vive mais um desses momentos. Para o pesquisador Milton Cunha, do Observatório do Carnaval do Museu Nacional/UFRJ, a liberação de grandes eventos e festas privadas enquanto os desfiles das escolas de samba estão suspensos é uma postura elitista. “Entendo quando a autoridade bloqueia tudo. Liberar uns e não liberar outros mostra dois pesos, duas medidas”, disse ao Estadão.
“Você, artista popular, não vamos cantar a sua música, mas o bloco da cantora ‘tal’ está preservado e poderá ir à arena com milhares de pessoas, são os que podem pagar os R$ 100 de entrada, mais as bebidas. Que janela é essa que fecha para a exibição do artista popular, de comunidade, de escola de samba? É muito sintomático você ver que a branquitude pode e a negritude não pode”, comparou Cunha, que estudou o carnaval no mestrado, doutorado e pós-doutorado e também é conhecido por ser comentarista de desfiles na televisão.
“Qual seria o contágio seletivo do carnaval da Sapucaí que não acontece na arquibancada na Fórmula 1, no show gospel? Qual critério científico para poder aglomerar e cantar para Jesus e você não poder cantar e dançar pra sua escola de samba? Que vírus é esse que reage de diferentes formas humanos para quem canta gospel e samba? É conversa para boi dormir”, questionou.
Para ele, não há sentido em proibir os desfiles do sambódromo, enquanto outros eventos com grande público estão autorizados. “(Em aglomeração) Carnaval é igual (a) uma festa rave, um show de rodeio em Barretos, um evento gospel com milhares gritando ‘aleluia’”, compara. “A grita (reclamação) ecoa menos (quando vem dos envolvidos com carnaval).”
Cunha considera que as frequentes associações do carnaval de 2020 ao espalhamento da covid-19 são reforçadas pelo conservadorismo, historicamente visto contra artistas populares, oprimidos pelo poder público, a polícia, as elites e algumas religiões. “Prove que as mortes vieram do sambódromo em 2020”, desafia. Os primeiros casos no País foram de viajantes que contraíram a doença do exterior ou que tiveram contato com pessoas que vieram de fora. “O samba apanha desde que ele nasceu, é coisa de preto, de pobre, de comunidade.”
'Vai ser uma outra coisa, fora do contexto comum', diz Cunha sobre carnaval em abril
Perguntado pelo Estadão sobre a mudança na data dos desfiles do Rio e de São Paulo para o feriadão de Tiradentes, Cunha avalia que o evento terá uma atmosfera distinta de outros anos. Será mais um grande espetáculo, uma grande apresentação, mas sem estar dentro de um contexto festivo nacional, com outro simbolismo.
“Na quinta de carnaval, quando o prefeito entrega a chave da cidade pro rei momo, o Rio entra em transe, o ar da cidade muda, é uma energia doida, um torpor carnavalesco que não vai existir em abril”, compara. “Os desfiles das escolas de samba vão ser um produto cultural que em nada vai estar circunscrito nesse torpor. Vai ser uma outra coisa, fora do contexto comum.”
Entre os pontos mais discutidos desde o anúncio da mudança, está o de desfilantes e trabalhadores do setor que precisarão optar por uma das duas cidades, pela incompatibilidade de ir aos desfiles nas duas capitais (geralmente, os grupos especiais desfilam em dias distintos). Uma decisão que ocorre em um contexto de dois anos de dificuldades financeiras no setor.
Ele ainda comenta sobre a proximidade da nova data com a Alvorada de São Jorge, tradicional celebração que atrai milhares de pessoas ao antigo Campo de Santana, a cerca de um quilômetro do sambódromo carioca, na região central do Rio. “Vai ser uma miscelânea de São Jorge com escola de samba, vai ser interessante”, comenta. “Esse símbolo religioso (no carnaval, geralmente) fica na quadra. Dessa vez, ali, o São Jorge vai estar olhando os carros alegóricos.”
Para o pesquisador, “a longa espera” para o carnaval subsequente ao de 2020 também tem mudado os barracões e as quadras. São quase dois anos com o mesmo enredo e um processo de produção com um ritmo que variou, sem contar a “penúria” financeira que os trabalhadores do setor enfrentaram e a insegurança sobre a realização de fato na nova data. “Estamos vivendo em tempos sub judice. Aguardando, esperando. Fica todo mundo aguardando, se olhando.”
“É como se já tivesse desfilado os sambas, mas não se desfilou. São enredos mais longevos. Tudo ficou muito longo”, aponta. “Do lado artístico, é estranhíssimo conviver 24 meses com a mesma coisa. A gente está careca de saber o enredo. É uma página que tem que ser virada. A gente está preso a uma coisa que não anda."
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