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Droga é liberada em Portugal? Entenda como funciona na prática modelo citado pelo STF

Descriminalização do consumo de vigora desde 2001 em país europeu; especialistas elogiam formato, mas fazem ressalvas sobre piora nos programas de atenção social e de saúde

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Foto do author Marcio Dolzan
Por Luciana Alvarez e Marcio Dolzan
Atualização:

Em Portugal, vigora uma lei que descriminaliza o consumo de drogas e a polícia deixou de prender usuários com pequenas quantidades de entorpecentes. Essa norma, vigente desde 2001, veio acompanhada por programas de prevenção ao vício e de redução de danos, como a substituição de heroína por metadona. No lugar de serem levados à prisão ou ao tribunal, dependentes químicos são encaminhados a comitês contra o vício.

A experiência portuguesa, que tem sido apontada como exitosa até agora pela maior parte da literatura científica, foi citada mais de uma vez pelos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio.

Limite adotado em Portugal para porte de maconha é de 25 gramas Foto: Adobe stock

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O ministro Luís Roberto Barroso defende, por exemplo, o limite de porte de 25 gramas de maconha como parâmetro para definir o consumo próprio, referência semelhante à usada em Portugal. O magistrado defendeu ser prudente seguir o modelo de um “país com bem sucedida experiência de mais de uma década na matéria”.

Já Kassio Nunes Marques fez ressalvas à iniciativa portuguesa, citando notícias que dão conta sobre a preocupação com o aumento do uso de narcóticos no país europeu. Para ele, a descriminalização pode ter “consequências imprevisíveis sobre o consumo em locais públicos, principalmente em escolas e outros locais frequentados por crianças e adolescentes”.

  • A lei portuguesa descriminalizou o consumo com uma limitação de quantidade equivalente a 10 dias de uso, com proporções reguladas por portarias segundo cada tipo de substância. Para a erva de cannabis (maconha), o limite é 25 gramas.

Mas quem vender, oferecer, produzir, cultivar ou estiver em posse de volumes maiores do que os fixados pela lei continua sujeito a prisão. “Nada é legal; até a cannabis é proibida. Podem achar que somos mais tolerantes, mas temos uma lei proibicionista”, diz Jorge Quintas, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, em Lisboa; para especialistas, opção feita pelo país permite foco maior em combate ao tráfico Foto: Adobe stock

Passou a vigorar na Alemanha uma nova lei também adotou o limite de 25 gramas para a posse de maconha para adultos e com fins recreativos.

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Na época da mudança da lei, houve bastante controvérsia em Portugal. “Os tribunais não eram capazes de resolver a questão, e nem eram o sítio apropriado para isso. Foi uma decisão que veio no final de longa discussão política, mas não sem polêmica”, relembra Quintas. Em 2001, o premiê português era António Guterres, hoje secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

O que acontece com quem é flagrado usando drogas?

  • Embora consumir não seja crime, não se pode usar livremente. Quem for pego com drogas, mesmo em pequena quantidade, é encaminhado para uma comissão de dissuasão.

“Seria algo como conduzir acima da velocidade: quem é pego não vai preso, mas recebe sanção”, explica o médico Manuel Cardoso, do Conselho Diretivo do Instituto para Comportamentos Adictivos e Dependências (Icad), ligado ao Ministério da Saúde.

“No caso das drogas, a pessoa tem que se apresentar à comissão, onde será ouvida por uma equipe multidisciplinar, formada por profissionais da psicologia, serviço social e um jurista. A ideia é entender as razões para o consumo, avaliar o risco de dependência, encaminhar para tratamento ou outras medidas”, acrescenta ele. Não é comum, mas pode haver a cobrança de uma multa.

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O uso frequente de drogas continua existindo, mas em níveis menores do que na época em que era criminalizado.

  • Em comparação à média da União Europeia (UE), Portugal tem menor prevalência de consumo no último ano em todas as substâncias ilícitas pesquisadas no European Drug Report. No caso da cannabis, o consumo é a metade dos valores da Espanha, França, Itália e Holanda.
  • A cocaína tem prevalência média de 0,4% entre as nações pesquisadas, mas entre os portugueses é de 0,2%. Nas anfetaminas, a média dos 27 da UE é de 1,4%, mas em Portugal ficou em 0,1%. No caso do ecstasy, o número geral é de 0,9%, mas a taxa lusitana ficou em 0,1%, o valor mais baixo do bloco.

Já a proporção de adultos que relatam uso de alguma droga ilícita ao longo da vida cresceram nas últimas duas décadas, mostram estudos. Conforme o Inquérito Nacional sobre o Consumo de Substâncias Psicoativas pela População Geral, conduzido por pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa, mostram elevação de 7,8% em 2001 para 12,8% em 2022.

Falta de verba para programas de apoio é gargalo

Uma queixa frequente, inclusive dos defensores da descriminalização, é o baixo financiamento público para os programa de apoio. Em 2012, o governo fez mudanças no sistema e muitas atividades foram terceirizadas para ONGs e a verba usada no setor caiu para menos da metade.

A pandemia também exigiu mais do sistema de saúde e fragilizou os tratamentos de vícios. “Nossa capacidade de dar resposta e o tempo para a resposta está aquém do que precisaríamos”, reconhece Cardoso, do Icad.

Como resultado, as mortes por overdose voltaram a crescer e, em 2021 chegaram a 74, número mais alto desde 2009. No ano seguinte, o último para o qual se tem dados, foram 69 óbitos do tipo.

Para Américo Nave, diretor da Associação Crescer, Portugal vive um crescimento do consumo de drogas nas ruas por falta de financiamento nos serviços de tratamento e redução de danos. “Uma pessoa que hoje pede uma consulta fica mais de 3 meses à espera. Às vezes, quando chega a consulta, a pessoa nem se lembra que havia pedido”, relata.

A Crescer, que tem financiamento do Icad e dos municípios onde atua, acompanha cerca de 2 mil pessoas que consomem substâncias ilícitas no distrito de Lisboa. Tem equipes multidisciplinares, com psicólogos e assistentes sociais, que vão para a rua, nos locais onde há consumo de drogas, para oferecer seringas e cachimbos aos usuários.

Depois, partem para a estratégia de oferecer alternativas de vida. “Eles (as equipes) estabelecem uma relação com quem está a usar e, a partir disso, encaminham para estruturas de saúde, sociais, substituição por metadona e tratamento”, descreve Nava.

Em geral, o primeiro contato é feito pelas ONGs e os tratamentos médicos, pelo Serviço Nacional de Saúde, o SUS de Portugal. Tudo é gratuito para o usuário.

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“Não quero dizer que tudo vai bem, mas há menos estigmas quando a pessoa procura um serviço de saúde ou social. Temos o programa Housing First (moradia primeira, em tradução livre), que coloca em casas comuns pessoas que consomem e estão sem abrigo, o que não seria possível se o consumo fosse crime”, relata.

No Porto, político lidera resistência

Entre autoridades, uma das poucas vozes a criticar a política antidrogas de Portugal tem sido o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, cargo equivalente a prefeito. Segundo ele, os cidadãos têm medo de circular pelo espaço público diante do alto consumo de entorpecentes nas ruas.

Há cerca de um ano, Moreira anunciou que proporia o retorno da criminalização, mas na sequência disse que não pretendia tornar crime o consumo de forma geral, e sim endurecer regras para quem usa nas ruas.

Em outubro, uma revisão da lei portuguesa incluiu drogas sintéticas, como o ecstasy, na lista de substâncias descriminalizadas para consumo. Para Moreira, a norma “facilita os circuitos do tráfico”.

A venda ilegal de drogas desafia as autoridades: Portugal é rota do tráfico por receber cargas ilegais em seus portos, que depois são escoadas pelas vias terrestres para outras nações europeias. Segundo Sabrina Medeiros, professora de Defesa Nacional na Universidade Lusófona de Lisboa, núcleos do Primeiro Comando da Capital (PCC) no país tem crescido nos últimos cinco anos.

Mas, para ela, a descriminalização ajuda no combate. “As forças policiais mal perdem tempo com o consumo, mas a parte de investigação do tráfico é pesadíssima. Como os recursos são limitados, descriminalizar permitiu direcionar um esforço maior contra o tráfico”, avalia.

E funcionaria no Brasil?

No Brasil, o ministro Dias Toffoli pediu vista em um julgamento que se arrasta desde 2015, que avalia a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006, que não prevê a prisão para usuários. Até agora, o placar está em 5 a 3 a favor da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, mas não há consenso sobre encaminhamentos práticos - quantos gramas, por exemplo, marcariam a diferenciação entre usuário e traficante.

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O julgamento tem ocorrido a passos lentos e sob ameaças da reação do Congresso, que acelerou a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza o porte e a posse de qualquer droga, independentemente da quantidade. A resistência no Legislativo é liderada, sobretudo, pelos parlamentares evangélicos.

A proposta de descriminalização também não tem adesão popular. Pesquisa Datafolha divulgada em março mostra que o percentual de brasileiros que dizem ser contra a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal subiu de 61% (na medição de março) para 67%.

Como o Estadão revelou, em seu voto Toffoli planeja abrir nova corrente de entendimento ao dar prazo para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Congresso e Executivo estabelecerem política pública em relação a usuários.

O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que coordena a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é um crítico da descriminalização das drogas. Ele afirma que mesmo os modelos tidos como bons exemplos internacionais não resolveram o problema.

“O modelo de Portugal não funciona nem em Portugal. Teoricamente, eles teriam as câmaras em que encaminhariam os usuários para tratamento, mas elas não têm recursos para oferecer tratamento. E as pessoas raramente vão ou recebem esse tratamento efetivo”, afirma.

E, para ele, tolerar o uso e combater o tráfico é uma receita que não combina. “Descriminalizar o consumo de um produto que a comercialização e o fluxo da produção ainda é completamente ilegal: é uma contradição inerente à política de drogas no mundo todo”, diz ele, que tem experiência em programas de atendimento na Cracolândia, em São Paulo.

Entre os contrários à descriminalização, estão ainda o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria.

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Pelo mundo, fracassos em experiências de descriminalização também lançam dúvidas sobre o alcance do modelo. Em 2021, Estado americano do Oregon (EUA) foi pioneiro ao implementar política de descriminalização do consumo de drogas pesadas. Mas cenas de aplicação de drogas nas ruas de Portland e a alta de overdoses fizeram o governo local recriminalizar o consumo de narcóticos nesta semana.

Já na avaliação de Silvia Martins, pesquisadora brasileira na área de Epidemiologia e Uso de Substâncias na Universidade de Columbia (EUA), políticas estrangeiras de descriminalização poderiam ser replicadas no Brasil, desde que acompanhadas de estratégias de prevenção, sobretudo entre crianças e adolescentes.

Isso porque, segundo ela, não é possível estabelecer níveis seguros de consumo, mas entre as faixas etárias mais jovens os estudos mostram que o desenvolvimento do cérebro pode ficar comprometido.

“A maioria dos estudos mostra que a legalização do porte para consumo recreativo de maconha nos Estados Unidos levou a aumento da prevalência de uso em adultos maiores de 21 anos, porém não se vê aumento substancial de uso em adolescentes após legalização de consumo recreacional de maconha por maiores de 21 anos”, afirma.

“Do ponto de vista de saúde pública, é importante descriminalizar o porte pessoal de pequenas quantidades de maconha para evitar o encarceramento desnecessário de pessoas que portam pequenas quantidades de maconha para uso pessoal”, argumenta Silvia.

O Instituto de Defesa do Direito de Defesa disse, em nota divulgada em março, que, “na prática, a diferenciação entre traficante e usuário/a se dá por preconceitos”. Estudo divulgado pelo Ipea em 2023, acrescenta, “expôs qual o perfil de quem está preso por tráfico de drogas no Brasil: jovens negros, detidos com baixa quantidade de substância em abordagens policiais, condenados somente com base na palavra dos agentes”.

O Monitor de Políticas de Drogas nas Américas, do Instituto Igarapé, aponta que quatro países nas Américas regulam a cannabis para fins recreativos: Canadá, Dominica, Uruguai e Estados Unidos, onde mais de 20 Estados legalizaram esse consumo, com quantidades que variam conforme o marco regulatório local.

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No Uruguai, a compra de até 40 gramas por mês de maconha, em farmácias especializadas, foi legalizada em 2013. /COLABOROU PEPITA ORTEGA

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