Vivemos em uma nação que segue criando dificuldades para a superação do racismo. Um estudo recente encomendado pelo Instituto Peregum confirma que no Brasil as pessoas não se dizem racistas (85%), mas reconhecem que o racismo existe (81%). Isso significa que o ato da negação faz com que as pessoas se isentem de encarar um problema que precisa de uma sociedade inteira para ser solucionado.
O Brasil é, sim, um país racista e essa não é uma afirmação vazia. Este dado vergonhoso está registrado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), desde 2001, quando ocorreu a 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, na África do Sul.
No evento, a comissão brasileira apresentou números do alto nível de vulnerabilidade econômica e social da população negra (pretos e pardos), a maioria abaixo da linha da pobreza e carente de serviços públicos básicos (moradia, alimentação, saúde, educação, segurança pública e emprego).
Mas, passados 23 anos, o compromisso de superar os baixos índices, por meio de políticas públicas para as relações étnico-raciais, ainda enfrenta obstáculos que encontram razões no racismo estrutural. Para além do esvaziamento deste conceito devemos nos afastar da abstração, para reconhecer que se há racismo é porque existem racistas. Lembremos da famosa frase da ativista Angela Davis: “numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
Os últimos dados sobre a violência contra as religiões afro-brasileiras, por exemplo, são alarmantes e atestam que estamos naturalizando um problema urgente. Apesar do Brasil ser um país que possui a maior diversidade de práticas religiosas do mundo, dados de 2023 do Disque 100, serviço do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), alertam para um aumento de denúncias e violações de direito à liberdade religiosa, que atingiram respectivamente, 64,5% e 80,7%, em relação ao ano anterior.
Foram três denúncias de intolerância religiosa por dia entre 2021 e 2022. Isso evidencia os crescentes ataques, injúrias, depredações e perseguições aos terreiros e seguidores de tradições como Candomblés e Umbandas. A maioria dos ataques teria partido de pessoas do segmento evangélico, principalmente neopentecostal, em direção às religiões afro-brasileiras.
Uma tensão motivada pelo discurso de ódio, principal estratégia para disputar espaços de fé e dominação política, além do rentável mercado religioso, que é uma realidade no País. Isso expõe a discriminação racial por meio da demonização e de relatos de constrangimentos, ofensas, invasões de terreiros e até assassinatos. Outro agravante é que o MDHC apontou que a maioria das vítimas do racismo religioso são mulheres (68,5%).
Se os números dessa violência só aumentam e no Brasil o racismo religioso é crime (Lei 14.532/2023) – inafiançável e imprescritível – cabe pensarmos na importância de políticas públicas eficazes, no papel da educação para as relações étnico-raciais e na urgência de atitudes antirracistas. É dever do Estado promover políticas públicas de proteção, que assegurem os direitos de liberdade religiosa e eliminem o sentimento de impunidade diante dos ataques crescentes.
Existem poucas delegacias e agentes públicos especializados nesse tipo de crime. Os números de seguidores são subestimados e não há mapeamento nacional de terreiros e suas especificidades, dificultando o reconhecimento do valor cultural e histórico das religiões afro-brasileiras.
A prática antirracista exige que quebremos o silêncio diante de injustiças sociais. A percepção de que vivemos em um país racista nos obriga a reconhecer que estamos comprometidos a nos indignarmos com sua existência. Em relação às religiões afro-brasileiras, quando nos calarmos diante das violências estamos permitindo que, em nome de uma religião, um grupo religioso ataque criminalmente o outro. Temos que parar de naturalizar o racismo religioso no Brasil.
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