“Aqui nada se perde, tudo se transforma”. Embora tudo por ali no finalzinho da Rua Galeno de Almeida venha se transformando bastante, o lema impresso no cartão de visitas da Cristais Eduardo não vem podendo ser cumprido nos últimos tempos. Por causa de dois empreendimentos imobiliários que cercaram o estabelecimento comercial que leva seu nome, Eduardo Augusto Teixeira Pimentel está impossibilitado de exercer o ofício ao qual se dedica há 70 de seus 83 anos - 40 deles no endereço pertinho da avenida Doutor Arnaldo.
Localizada entre as ruas Oscar Freire e Arruda Alvim, a antiga casa de telhado estilo borboleta onde fica a Cristais Eduardo é um dos poucos imóveis que resistiu ao assédio dos construtores dos novos prédios residenciais que estão sendo erguidos pela incorporadora Sisan, braço imobiliário do Grupo Silvio Santos, na nova fronteira de um dos endereços mais valorizados da cidade.
Com quase todos os imóveis vizinhos vendidos para a Sisan, a Cristais Eduardo está ilhada pelo cenário de terra arrasada comum do início de obras de grande porte. Seria apenas uma vista ruim, após a demolição das casas vendidas e da terraplanagem, se o amplo canteiro de obras que tomou conta do lugar não estivesse causando estragos no antigo imóvel onde há quatro décadas seu Eduardo executa seus serviços, descritos logo após a frase de efeito no cartão de visita: “Restauramos cristais, louças, prataria, biscui e objetos de arte. Lapidação, Prateação, Metalização, Presentes.”
Com o início das fundações da obra, os bate-estacas chegaram a fazer tremer as prateleiras onde seu Eduardo mantém uma variedade de produtos de vidros e cristal expostos para venda. Mas esse nem foi o maior transtorno. Na fase de escavações do terreno, há cerca de dois meses, uma parede da oficina de seu Eduardo, que fica na parte de trás do antigo imóvel, começou a desabar, colocando em risco a segurança do lugar.
As obras foram paralisadas pelos construtores, que chegaram a um acordo com seu Eduardo e dona Lígia, moradora de uma casa nos fundos da Cristais Eduardo: Lígia e sua família foram para uma casa alugada pela construtora no Butantã, onde ficará por um ano. Sua casa, agora utilizada como base de serviços e alojamento pelos construtores do prédio, será reconstruída e entregue de volta à proprietária. Com seu Eduardo, o acordo foi o de reconstrução da parte afetada do imóvel e pagamento mensal de uma indenização por quatro meses, tempo previsto da paralisação de suas atividades.
São Pedro
Apesar do bom humor com que trata o assunto, Eduardo não esconde a angústia com a situação. “Trabalhar vicia. É vício”, diz. “Trabalho há tantos anos, vou parar de que jeito?” pergunta, para em seguida dar a resposta. “Se eu parar, São Pedro me engancha”, brinca. “Eu preferia que isso não acontecesse. É um transtorno, uma confusão. Eu gostaria de estar na rotina”.
Rotina que tenta manter, apesar de todos os equipamentos da oficina estarem desmontados. Mesmo impossibilitado de trabalhar, e com uma compensação financeira que permitiria que ficasse de férias prolongadas, seu Eduardo vai diariamente ao local. Pessoalmente ou por telefone explica aos clientes que o procuram que não poderá aceitar encomendas. “Meu maior prazer é ver a satisfação do cliente com o produto restaurado, mas agora estou só com algumas vendas, tendo que recusar serviço.”
Oferta
Eduardo conta que os construtores dos prédios tentaram comprar seu imóvel, mas que não aceitou por considerar a oferta insatisfatória. “Se fosse uma moradia, seria mais fácil. Mas aqui é um ponto comercial. Minha clientela está toda por aqui e sabe onde estou. Não posso ir para longe. Se tivessem feito uma oferta melhor, que pagasse o ponto e permitisse que eu fosse para outro ponto por perto, eu venderia. Mas pelo que ofereceram não pude aceitar”. O artesão não revelou quanto ofereceram pelo seu imóvel, mas segundo ele os valores estão abaixo dos preços praticados pelo mercado imobiliário na região.
Outros vizinhos que não quiseram vender seus imóveis também disseram que não aceitaram por considerarem a oferta irrisória. Os apartamentos dos dois novos condomínios – “localizados numa das regiões mais cobiçadas de São Paulo, pertinho da Oscar Freire”, como diz o material promocional da Sisan - foram vendidos a preços que vão de R$ 360 mil a perto de R$ 1 milhão, no caso das coberturas.
Procurada, a empresa do grupo Silvio Santos não quis comentar o caso. Enquanto as obras continuam, seu Eduardo aguarda com ansiedade a reconstrução da sua oficina, mesmo sabendo que provavelmente a reforma terá a mesma imperfeição dos objetos quebrados que restaura e recupera: “Vidro e cristal é igual a uma mulher. Depois da restauração, fica igual velha quando faz plástica. Fica bom? Fica. Mas nunca mais será como antes.”
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