Nas vésperas da final da Copa do Mundo de 2002, um enorme grupo de jornalistas ficava reunido no saguão do hotel onde a seleção brasileira se hospedava em Yokohama aguardando a saída do time de Felipão. Como acontece sempre nessas situações, as esperas eram longas e acabavam virando bate-papos sobre os assuntos mais diversos em grupos que se espelhavam pelo amplo salão.
Num desses grupos, um repórter francês da revista France Footbal perguntou aos colegas brasileiros porque não havia nenhum jornalista negro do país entre dezenas de profissionais que cobriam a seleção do Brasil, quando boa parte do time que estava prestes a se tornar pentacampeão era formada por negros.
Após alguns segundos daquele silêncio constrangedor, alguém arriscou a começar uma explicação. Falou da desigualdade social, enquanto outro lembrou do passado escravista, das falhas do sistema educacional, da dificuldade que muitos pobres tem para ingressar na universidade e que por isso nas próprias faculdades não havia muitos alunos negros.
Oito anos depois, a seleção brasileira parte para tentar o hexacampeonato num país que durante anos foi marcado por um dos mais violentos regimes de segregação racial. O apartheid que por quatro décadas restringiu os direitos da população negra no África do Sul terminou em 1990. Desde então, o país tenta diminuir a desigualdade social provocada pelo regime racista.
O Estadão desta terça-feira de convocação para a Copa da África do Sul traz um texto de Marco Antonio Rezende informando que políticas sociais, entre elas um amplo programa de inclusão racial do governo - Black Economic Empowerment (BEE) - estão criando uma nova classe média negra no país:
“... O programa de maior impacto é o BEE, destinado a inserir a maioria negra na economia capitalista. Bastante polêmico quando foi criado - seus detratores diziam que espantaria investidores e desestimularia o empreendedorismo - hoje é parte da vida cotidiana do país.
Para vender para o governo ou participar de concorrências publicas, as empresas tem que ter o certificado de adequação ao BEE. Para isso, têm que cumprir sete critérios, entre eles cotas de negros na média e alta gestão, fornecer cursos de formação para gerentes e executivos negros e comprar produtos ou serviços apenas de outras empresas igualmente certificadas com as normas do BEE.
As grandes corporações têm que ceder em média 25% do seu controle a acionistas negros. As empresas 100% subsidiárias de empresas estrangeiras estão isentas da obrigação da cota no controle acionário. ...”
Aqui no Brasil, onde desde 2003 existe uma Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério, estudo recente da Fundação Getúlio Vargas indica que 53% dos negros do país estão na classe média. E no mês passado o Supremo Tribunal Federal promoveu debates antes de começar a julgar duas ações contra a política de cotas raciais em universidades públicas. O Supremo ainda não definiu a data para julgar as duas ações.
Em 2002, no Japão, a pergunta do jornalista francês sobre a diversidade racial entre seus colegas brasileiros ficou sem uma resposta convincente. Nessa copa de 2010 não é difícil que a situação se repita na África do Sul. A imprensa brasileira, apesar de recorrentemente abordar assuntos sobre diversidade e outras questões raciais em suas páginas, ainda está longe de ser um exemplo no assunto.
Para ficar no exemplo da casa que abriga esse blog, nos três veículos que ocupam duas amplas áreas de redação em único andar é possível contar nos dedos - de uma só mão - o número de negros entre quase 500 jornalistas que dão expediente ao longo do dia nas mais diferentes tarefas e funções de escrever, editar, diagramar e fotografar. Já em outros setores, como na gráfica ou nos setores de serviços terceirizados que cuidam da limpeza e do transporte a situação é inversa.
Não tenho dados para afirmar que os negros são a maioria nessas funções. Mas qualquer um que tiver a oportunidade de fazer uma visita aos diversos setores de uma empresa jornalística no Brasil poderá constatar a situação.
Gilberto Gil cantou anos atrás, em “Tradição”, um “tempo que preto não entrava no Bahiano nem pela porta da cozinha”. Felizmente, isso não existe mais. Os próprios clubes sociais quase já não existem mais. Assim como ficou para trás o tempo em que times de futebol não admitiam negros em seus quadros.
Dia desses esteve por aqui o grupo de samba Revelação. Desconhecido por quase toda a redação, mas sucesso em todo o País, o grupo falou da carreira, do sucesso, do lançamento do CD e do DVD “Ao Vivo no Morro” e também cantou algumas músicas. Uma rara chance de se ver negros dentro de uma redação no Brasil.
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