16.02.2007 *
Quem usa internet há algum tempo já sabe: quando se recebe o segundo e-mail com a mesma mensagem, vindos de remetentes diferentes, não vai demorar para que vários outros iguais comecem a surgir na caixa postal.
Apesar de os temas dessas correntes serem variados, geralmente os que predominam são aqueles textos com alguma sacada sobre o modo de ver a vida atribuída ao Arnaldo Jabor ou ao Verissimo, outros do estilo 'brasileiro indignado', que surgem após aumento de salário dos deputados e de crimes de grande repercussão, ou aqueles panfletários, de mobilização em favor de uma causa.
Mesmo ofuscada pela comoção em torno da morte de um garoto num assalto no Rio de Janeiro, uma velha causa nacional voltou a ganhar força nos botões "encaminhar" dos outlooks e afins nos últimos dias: a rivalidade entre os pilotos Ayrton Senna e Michael Schumacher.
A coisa dessa vez começou, no dizer das mensagens, "quando um brasileiro descobriu a parada e começou a começou a espalhar o link para todos os brasileiros." A parada, no caso, era uma enquete do jornal italiano Corriere della Serra, que perguntava aos seus leitores qual o maior piloto de Fórmula 1 de todos os tempos? E como no momento que esse brasileiro descobriu a parada o alemão estava (como muitas vezes em sua carreira) vencendo, iniciou-se a cruzada virtual em prol do "nosso campeão".
Como a campanha se propagou com uma velocidade que faz jus ao tema, Senna logo ultrapassou Shumacher e nesse momento (23h de quinta-feira) ocupa a pole position com 62,4% dos respeitáveis mais de três milhões de votos. O que significa que pelo menos dois milhões de cliques foram dados em favor do brasileiro.
Mesmo que o número de votos não corresponda ao número real de pessoas (apesar dos mecanismos adotados pelo site para impedir o voto múltiplo é possível que os mais fanáticos tenham dado um jeito de votar várias vezes) é uma cifra respeitável.
Tirando o aspecto divertido da coisa, que é aquele espírito de porco típico de adolescente que tem capacidade de melar coisas pretensamente sérias (como uma torta na cara jogada de engravatados), a quantidade milionária de votos diz respeito a outras questões que vão além da pergunta sobre quem foi o melhor piloto de todos os tempos, impossível de ser respondida.
Um post num blog com link para a enquete, conclamava: "Vote no Senna (rápido!)." É como se dissesse "mexeram com um de nós, vamos pro pau!". Reflexão zero, apesar de estar num blog que costuma se autoproclamar bem-pensante.
Um mandamento não escrito, mas seguido cegamente por outros bem-pensantes, reza que interatividade é fundamental para o sucesso na internet. Seguida como dogma, a busca pela interatividade faz com que enquetes como essa do jornal italiano proliferem. E com a recente obrigação de outra interatividade, a dos jornais impressos com o seu braço internético, cada vez mais essas sondagens são usadas como fonte para matérias jornalísticas. Na maioria das vezes não passam de algo do tipo "leitor prefere isso a aquilo ou é contra tal medida".
Qual a importância dessa opinião, comprovadamente contaminada, como mostra esse caso, que não a de satisfazer um impulso cliqueiro insano do leitor? E porque esse leitor - no caso o brasileiro - não se contenta em aproveitar a oportunidade de conhecer o que pensam os italianos sobre o assunto? Não seria muito mais interessante saber que os italianos acham Schumacher melhor que Senna, do que ver o brasileiro vencedor de uma espécie de gincana colegial de dimensão desproporcional?
E, para que esse post não fique deslocado do assunto que o originou e da seção de esportes, mais algumas questões: porque os brasileiros não podem se perguntar se o Schumacher não terá sido mesmo melhor que o Senna? Será que o Senna, que antes mesmo daquele 1994 via Schumacher cada vez mais perto em seu retrovisor, já não estava com aquela sensação desagradável de ver que chegou o dia - nunca esperado - de que um novato tão ou mais talentoso começa a ocupar o seu lugar?
Não responda a essas perguntas. Todos os comentários serão deletados.
* Originalmente publicado no blog Bate-Pronto
Memória, gente e lugares
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.