O serviço de hospitalidade está no centro simbólico do racismo estrutural no Brasil. Este mecanismo social não permite que exista a equidade racial na atividade hoteleira, sendo uma das mais castigadas por estar tão relacionada ao conceito de servidão. Existe um contexto histórico de marginalização e privilégios que ainda impõe barreiras de crescimento para os profissionais afro-brasileiros que buscam ocupações mais estratégicas e de liderança.
Este cenário é reflexo de um processo discriminatório que soube se adaptar aos momentos históricos e sociais do nosso país, continuando uma marginalização sistêmica e institucional ao grupo que fora antes escravizado. Ainda não temos pesquisas oficiais sobre a falta de equidade racial com um recorte para o segmento de hospitalidade. Mas o que fica claro é que não existe representatividade negra nas posições de liderança, diretoria e C-level na maioria dos hotéis e meios de hospedagem.
Há três fatores importantes relacionados com esse contexto. O primeiro é o racismo consciente, que manteve uma desigualdade histórica que privou a população negra do acesso à terra e à educação. É importante entender que momentos históricos como o Decreto 528 das imigrações europeias (1890) o governo escolhe, por meio desse decreto, incentivar as imigrações europeias para preencher essa demanda ao invés de empregar a população libertada da escravidão, limitando assim o acesso ao emprego e geração de riqueza.
O segundo é endêmico do sistema, que limita o acesso à educação e a qualificações de qualidade necessárias para o crescimento em uma carreira na área da hospitalidade. Já que a maioria dos cursos de turismo e hotelaria são oferecidos por instituições privadas com custos elevados.
O terceiro fator é o preconceito inconsciente que dá forma ao racismo mais difícil de erradicar. Aqui a figura do negro é vista como a pessoa que serve e nunca para ser servido.
Com isso, na hotelaria impera a ocupação de negros em atividades operacionais como a limpeza, a cozinha e a manutenção. Quando a situação é invertida, ou seja, quando encontramos um gerente geral ou um CEO negro, isso causa um certo incômodo, o tal olhar enviesado e questionando se ele pode de fato ocupar esse lugar.
Tem alguma solução possível?
Um exemplo a seguir pode ser o do grupo Accor que, desde 2007, vem trabalhando em seu código de ética corporativa e responsabilidade o comprometimento com a Diversidade, Equidade e Inclusão. Segundo dados fornecidos pelo próprio grupo, em 2023 foi feito um mapeamento racial dos colaboradores. Dos que responderam à pesquisa voluntária, 50% se autodeclararam pessoas negras e 39% delas ocupam posições de liderança. Vale ressaltar que 29% ocupam níveis gerenciais nos hotéis da rede no Brasil.
Essa transformação é fruto de um trabalho de educação antirracista e ações coordenadas com diversas instituições de caráter social que visam quebrar as barreiras de acesso a educação e qualificação profissional para inserir jovens e pessoas periféricas, em sua maioria negras, no mercado de trabalho.
Lais Souza, gerente de Diversidade das Américas, esclarece que a Accor sustenta um calendário anual de diversidade com comunicações e palestras com profissionais referência no mercado focados em letramento racial para as equipes. Ela reforça que “falar de combate ao racismo na hotelaria é crucial.”
A Afroturismo HUB, empresa fundada por Hubber Clemente, também está disposta a transformar esse cenário oferecendo soluções e ações focadas na diversidade racial, e inclusão no turismo. Em um ano e meio de atuação, diversas redes hoteleiras e hotéis estão contratando palestras e treinamentos de introdução sobre a inclusão racial com o propósito de criar políticas internas que promovam ambientes mais acolhedores e inclusivos. Essas ações já impactaram mais de mil profissionais. Mas para ele ainda é pouco, uma vez que 90% das palestras e ações ainda acontecem em São Paulo.
São poucos os hotéis independentes que se preocupam em dar oportunidades com a intenção de buscar a diversidade e a inclusão. Porém, essa consciência está presente no dia a dia de Letícia Santanna, gestora do Georges Life, projeto de hospitalidade formado pelos hotéis La Ferme (em Atins) e Chez Georges (no Rio de Janeiro). Dos 42 colaboradores que trabalham no empreendimento, 27 são pretos e pardos, ocupando diversas funções em toda a hierarquia dos hotéis.
Durante muitos anos, Letícia participou de processos seletivos onde os recrutadores gostavam do seu currículo, mas sempre pediam para que ela mudasse sua aparência. Um ex-contratante chegou a solicitar que ela alisasse o cabelo, alegando que seria mais “apresentável”. A partir daí, ela se comprometeu a, se chegasse a algum cargo de gestão no Turismo, escolher as pessoas apenas pela competência e boa vontade. Assim como é na La Ferme e na Chez Georges, um time diverso que reflete os dados do IBGE.
Promover a equidade racial exige coragem. O desafio do setor é grande, precisando de um compromisso contínuo entre sociedade civil, instituições de ensino e empresas privadas para descolonizar o racismo estrutural. Necessitamos parar de dar a desculpa de que o negro não está qualificado à altura para um cargo de gestão. A representatividade não é mais uma escolha; ela é mesmo uma questão de humanidade.
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