BRASÍLIA - Há dois meses, o corpo do indígena que viveu mais de duas décadas isolado na mata do Sul de Rondônia, permanece insepulto. A Funai e a Polícia Federal não informam quando vão enterrar os restos mortais do “Índio do Buraco”, um homem de idade, língua e costumes desconhecidos, último sobrevivente de um grupo étnico envenenado e fuzilado por grileiros e madeireiros.
A saga do corpo do indígena começou a 23 de agosto, quando a equipe da Frente de Proteção Etnoambiental mantida pela Funai em Guaporé o encontrou morto numa rede, ornado de penas de araras, como se tivesse se preparado para a morte, dentro de uma maloca. Levado para Vilhena, cidade a 50 quilômetros, o corpo foi transportado em seguida num avião da FAB para Brasília. Na capital federal, passou por exames no Instituto de Criminalística. Um mês depois, retornou a Rondônia. Agora, está na sede da Polícia Federal.
Em meio à demora das autoridades em dar resposta sobre o sepultamento, a terra onde o isolado resistia, sem aceitar contatos com órgãos oficiais, entidades civis ou mesmo xamãs de aldeias vizinhas, voltou a despertar a cobiça externa. Em 1998, um dos últimos trechos de floresta nas margens do Rio Tanaru foi reservado pela União exclusivamente para a sobrevivência dele.
O governo classificou o Território Tanaru, de 8.070 hectares, equivalente a oito mil campos de futebol, como área de restrição de uso, isto é, para estudos e demarcação e homologação. De lá para cá, o lugar tornou-se um oásis numa região de desmatamento e expansão econômica, mesmo com clareiras abertas no passado por ruralistas.
Indigenistas, antropólogos e procuradores se mobilizam para garantir que o corpo possa ser enterrado na terra em que o indígena vivia e onde seus ancestrais foram mortos. Seria um passo decisivo para garantir a proteção do lugar.
É o primeiro caso de território em processo de demarcação em que morreram todos os indígenas que nele habitavam. O prazo de restrição de uso expira em 2025.
“O Estado Brasileiro deve ter o cuidado com a memória desse indígena que resistiu aos seus algozes”, afirma Bruno Biagio, que chefiou o Coordenação de Índios Isolados e Recente Contato da Funai. Ele observa que, desde os anos 1980, quando foi implantada a política de proteção dos isolados, o País avançava na garantia de direitos. Mas, nos últimos anos, a situação ficou “grave” – três indigenistas foram mortos.
Biagio refere-se a Maxwell Pereira, assassinado à queima roupa em Tabatinga (AM), em 2019, Rieli Franciscato, flechado por um isolado que estava sob pressão de grileiros em Seringueiras (RO), em 2020, e Bruno Pereira, emboscado por pescadores ilegais, em Atalaia (AM), neste ano. “Os isolados não identificam quem está na defesa deles.”
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Veneno
Na área de floresta cercada de pastagens e grandes plantações, o “Índio do Buraco”, de idade estimada de 60 anos quando morreu, construiu exatos 53 tapiris –malocas cobertas de palha – nos últimos 26 anos, sempre fugindo de madeireiros e grileiros. Ele mudava sempre de lugar dentro do território para não ser morto, numa vida de guerrilha. Assim, construía tapiris com uma entrada. Dentro, abria um buraco em forma ovalada, de meio metro de largura, um de comprimento e até três de profundidade.
Em 1995, os indigenistas Marcelo Santos e Altair José Algayer estiveram pela primeira vez frente a frente com o “Índio do Buraco”. Foram recepcionados com uma flechada, que quase acertou o documentarista Vincent Carelli.
No tempo mais antigo, os integrantes desse povo eram conhecidos como exímios guerreiros. “Quem entrava na terra deles não saía”, conta Marcelo. Com o tempo, os indígenas passaram a acreditar no pessoal das fazendas e manter relação pacífica. A aproximação foi fatal.
Depoimentos coletados por Marcelo indicam que esse grupo sofreu dois massacres. No primeiro, nos anos 1980, os indígenas trocaram produtos de suas roças por açúcar com pistoleiros de uma fazenda.
Os homens puseram veneno no açúcar e mataram parte da aldeia. Na década seguinte, um fazendeiro mandou atacar a tiros os sobreviventes, incendiar as casas restantes e passar o trator. Foi quando Marcelo encontrou seis buracos de antigas residências.
Assim, restou apenas um indígena no Tanaru. “Não conheço outro grupo que fazia buracos dentro de casas. Tem significado místico e religioso”, relata o indigenista. “Também faziam covas em trilhas, mas como armadilha de queixadas”, ressalta. “Eu era chamado de mentiroso, diziam que eu plantava índios, que não existiam aldeias.”
Durante anos, a indigenista Ivaneide Bandeira atuou no monitoramento da área onde o “Índio do Buraco” vivia. Participava de expedições para evitar invasões. “Ele nunca quis ser contatado por ninguém”, relata. “Vivia fugindo, estava cercado por grandes fazendas”, relata.
Ivaneide reclama da demora em sepultar o corpo. “A Funai não deixa sepultar. Para mim, é assustador. Não consigo entender. Ele enfrentou todo o massacre de seu povo, resiste, morre e agora a Funai não deixa descansar. É desumano.”
Há 40 anos no trabalho de defesa de comunidades indígenas, ela avalia que a cobiça pelo território está por trás da demora no sepultamento. Ivaneide defende a criação de uma reserva florestal e o sepultamento do indígena na área. “Enterrá-lo lá é impedir a grilagem”, avalia. “Não se pode negar a ele ser enterrado em sua terra.”
É a história de um corpo que, mesmo morto, impede a destruição da floresta. Ivaneide questiona o motivo de os restos mortais terem sido levados para Brasília já que própria Funai descartou assassinato.
“Ao que tudo indica a morte do indígena se deu por causas naturais”, destacou nota da entidade. O informativo de 27 de agosto relatou que sua equipe encontrou o corpo dele numa rede. “Não havia vestígios da presença de pessoas no local”, destacou. “Também não havia sinais de violência ou luta.”
O delegado Marcelo Xavier, que recebeu do presidente Jair Bolsonaro a missão de implantar uma política anti-indígena na Funai, chegou a desmarcar o enterro do “Índio do Buraco”. Na semana passada, o Jornal Nacional informou que a inumação estava prevista para o dia 14. Procurada pelo Estadão, a assessoria dele limitou-se a informar que “aguarda os laudos para definir os melhores procedimentos quanto ao sepultamento”.
A reportagem ainda pediu um esclarecimento sobre o motivo do envio do corpo para Brasília, as condições em que está e o processo do território indígena. Por sua vez, a PF não se pronunciou.
O indigenista Altair José Algayer foi quem encontrou o corpo do “Índio do Buraco” numa inspeção. Ele observa que jamais se saberá a origem, a língua e os costumes do homem do Tanaru e seria evasivo tentar elucidar o que pensava sobre a sociedade da qual fugia. Ainda assim, observa que, no final, mesmo precisando de ajuda, não quis fazer contato. “Foi algo muito ruim que ocorreu com ele e seu povo para ter resistência de lutar mesmo sozinho, por anos.”
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