O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG), no Rio Grande do Sul, associou o caso em que 208 pessoas foram resgatadas em situação de trabalho análoga à escravidão na cidade, na semana passada, à falta de mão de obra na região e às pessoas que supostamente deixam de procurar emprego porque “sobrevivem através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
Em nova nota divulgada nesta terça-feira, 28, o mesmo centro recuou, dizendo que as políticas públicas assistenciais são importantes, mas afirma que as pessoas não podem depender “exclusivamente do assistencialismo”.
“Situações como esta (pessoas trabalhando em situações análogas à escravidão), infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”, escreveu a entidade.
A nota foi divulgada no último sábado, 25, dias depois de agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal localizarem trabalhadores, funcionários da empresa Oliveira & Santana, mantidos à força em um alojamento e submetidos à violência física, salários atrasados, assédio moral, e jornadas de trabalho extenuantes, de acordo com a denúncia.
Um empresário de 45 anos, acusado de manter os funcionários nesta situação, foi preso em flagrante e solto depois de pagar uma fiança de cerca de R$ 40 mil. A Oliveira & Santana presta serviços terceirizados para vinícolas de Bento Gonçalves, como Aurora, Santon e Garibaldi. Os mais de 200 homens foram acolhidos em um ginásio municipal da prefeitura local, onde receberam abrigo, local para dormir, acesso à higiene, alimentação e assistência médica.
Nas críticas aos “programas assistencialistas”, a entidade não cita quais seriam esses programas especificamente, e também não apresenta números que ilustrem as afirmações sobre “falta de mão de obra” e de “pessoas inativas” que vivem exclusivamente com a renda de políticas de assistência social.
No mesmo comunicado, CIC-Bento Gonçalves afirma ser uma entidade “fomentadora e defensora do desenvolvimento sustentável, ético e responsável dos negócios e empreendimentos econômicos” e pede para que autoridades competentes “cumpram seu papel fiscalizador e punitivo para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis”.
Mas, em defesa dos comerciantes locais, diz também que é “fundamental resguardar a idoneidade do setor vinícola”, definida pela entidade como uma força econômica “importantíssima” para a microrregião, que é reconhecida pela produção de vinhos e por ser um destino turístico no País em função da atividade.
Nesta terça-feira, 29, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves publicou uma nova nota em suas redes. No novo comunicado, a entidade afirma que entende a importância das políticas públicas assistenciais, mas afirma que os melhores programas sociais que podem existir é “dignificar as pessoas por meio do emprego”.
“Entendemos que políticas públicas assistenciais são parte fundamental no compromisso social de oferecer amparo às pessoas em situação de vulnerabilidade. Nosso compromisso, enquanto entidade, é oportunizar que as pessoas não dependam exclusivamente do assistencialismo para sobreviver – mas que encontrem incentivo para ingressar/retornar dignamente ao mercado do trabalho”, afirma a nota do centro.
No novo posicionamento, o grupo manteve a postura de não mencionar de quais programas assistenciais se refere, mas - sem citar fontes - trouxe números para respaldar a informação de que região não oferece mão de obra. “Estima-se que hajam cerca de mil vagas de emprego em Bento Gonçalves que não são preenchidas por inexistência de candidatos”, diz o comunicado. “Estima-se, também, que o desemprego na região seja inferior a 1%”.
O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves voltou a criticar a situação encontrada pelos trabalhadores Oliveira & Santana e diz que o grupo está o grupo está engajado para “solucionar o episódio” e “garantir que situações semelhantes jamais tornem a ocorrer”. Como exemplo, o CIC-BG cita uma projeto de qualificação profissional para inserção e reinserção no mercado de trabalho, criado em agosto do ano passado, e que já inseriu mais de 50 trabalhadores em indústrias locais.
Questionado sobre o conteúdos das notas e sobre de quais programas o CIC-BG se referiu nos comunicados, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves não retornou até a publicação deste texto. A prefeitura de Bento Gonçalves também foi procurada sobre as declarações do centro, mas também não se manifestou.
‘Situação degradante’
De acordo com informações do Ministério do Trabalho e Previdência, mais de 200 trabalhadores viviam sem segurança, higiene e sofrendo agressões dos empregadores, como choques elétricos e uso de spray de pimenta. Segundo o auditor fiscal do Trabalho, Vanius João de Araújo Corte, os funcionários da empresa, muitos recrutados da Bahia, trabalhavam das 4h às 20h ou 21h, e, além de não receberem salário em dia, eram extorquidos por um mercado local que vendia os itens a preços superfaturados.
“Eles não estavam recebendo salários, com dívidas permanentes e em situação degradante, caracterizando o trabalho análogo ao de escravo. Todos foram então resgatados e ouvidos um a um pela fiscalização para que fosse calculado o valor devido para cada trabalhador e pagamento das indenizações trabalhistas pelos direitos negados”, disse o fiscal Vanius Corte.
Os trabalhadores prestavam serviços para empresas que contratavam mão de obra para grandes vinícolas locais, como Aurora, Salton e a cooperativa Garibaldi. Representantes dessas empresas se propuseram a pagar aos funcionários a quantia que deixaram de receber.
A vinícola Aurora se solidarizou com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e afirmou que repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas, além de alimentação de qualidade no café da manhã, almoço e jantar. ”A Vinícola Aurora reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista”, disse a organização em nota.
A Salton repudiou o episódio e disse que representantes da vinícola estão à disposição dos trabalhadores, de seus familiares e dos órgãos competentes “para colaborar com o processo e amenizar os danos causados pela prestadora de serviços”. A empresa reconheceu o erro em não averiguar as condições de moradia oferecidas pela Oliveira & Santana aos funcionários resgatados.
A Cooperativa Vinícola Garibaldi afirmou em comunicado que “desconhecia a situação relatada”, e disse que encerrou o contrato com a empresa terceirizada, que prestava à cooperativa o serviço de descarregamento dos caminhões. “Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito. Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos”. afirmou a nota.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.