Escavações arqueológicas realizadas para a construção de um complexo habitacional no bairro Paquetá, em Santos, revelam mais detalhes de como era a vida luxuosa de algumas famílias elitizadas que ocupavam este espaço da cidade no século 19. Garrafas de bebidas, louças importadas da Europa e utensílios de higiene raros para a época dão materialidade à passagem do tempo e às mudanças no perfil do morador da região: o espaço que serviu de casa para uma classe mais abastada há mais cem anos é, hoje, a base para o erguimento de moradias populares.
Ao todo, 2.982 peças consideradas de alta relevância arqueológica foram encontradas no sítio Paquetá, na mesma área onde será construído um prédio residencial voltado para os moradores de cortiços do centro da cidade, em um projeto de revitalização da região.
Os trabalhos foram realizados entre janeiro e maio deste ano por uma equipe de arqueólogos contratada pela Companhia de Habitação da Baixada Santista (Cohab Santista), responsável pelas obras. O serviço de escavação é uma medida obrigatória por leis ambientais para a autorização e aprovação da construção do empreendimento.
Uma maior parte dessas quase 3 mil peças data do final do século 19 e a primeira década do século 20, entre 1880 e 1910, explica Marcelo Manfrini, arqueólogo da empresa A Lasca e coordenador das escavações. “A maior parte desse material está associado à elite santista. Eram materiais caros, importados, praticamente todos vindos da Europa. Não eram todos que podiam ter acesso a esses objetos”, conta ao Estadão.
Para Manfrini, os achados foram importantes porque dão evidência material para aquilo que, até então, só existia em documento e ajudam a descortinar um pouco mais o passado da cidade e a dar mais pistas de como funcionava o fluxo de mercadorias que eram comercializadas na época.
“Existem muitas informações sobre esse período de Santos, como número de sacas de café vendidas e exportadas, quantidade de imigrantes circulando nesse período etc”, diz o arqueólogo. “Mas, agora, (com esses achados) a gente consegue costurar essas informações e saber, por exemplo, onde um determinado produto que chegou na cidade esteve, onde foi consumido e onde foi descartado. Antes, a gente sabia que ele chegava pelo porto, mas não sabia para onde ia”, acrescenta.
O acervo encontrado reúne, em sua maioria, utensílios domésticos. Louças importadas, garrafas de vidros de bebidas alcóolicas, cerâmicas sofisticadas também dão mais informações sobre o padrão de consumo e hábitos de quem vivia na região, bem como quais os estilos dos materiais que estavam sendo confeccionados naquele período.
“Entre 1880 e 1900, por exemplo, havia a predominância de kit de louças vindas da Inglaterra, de uma marca que se notabilizava por apresentar um estilo trigal, por exemplo”, detalha Marcelo Manfrini. “Vimos também que era muito comum entre as pessoas daquela localidade o consumo de vinhos de Portugal, mais especificamente da marca Antônio da Rocha Leão.”
Mas, além de louças e vidros, os arqueólogos encontraram também itens de porcelana, como azulejos e outros materiais construtivos; objetos de metal (dobradiças, maçanetas, moedas); pedaços de brinquedos da época, e até embalagem de cosméticos, como um produto capilar da época. Entretanto, um objeto em específico chamou a atenção do arqueólogo, justamente por se tratar de um produto pouco usual entre os brasileiros da época.
“Potes de pasta de dente. Eu gostei de ter descoberto porque é muito incomum. O ato de escovar os dentes, com pasta, no final do século 19, era muito nichado porque era um produto caro”, explica Manfrini. “O hábito de ter um cuidado dentário era uma prática social porque não eram todos que conseguiam”. Foram encontrados quatro potes do tipo, três de origem inglesa e um vindo da Alemanha.
Ocupação do bairro Paquetá
Os estudos e registros históricos apontam que esses objetos mais sofisticados pertenciam a uma elite da cidade de Santos que se enriqueceu com o comércio de produtos importados. Eram europeus ou brasileiros de famílias europeias (a maioria vinda de Portugal), que viviam no Paquetá, e que se beneficiavam da proximidade do bairro com o Porto de Santos, por onde chegavam as mercadorias produzidas do outro lado do oceano.
A ocupação do Paquetá começou na década de 20 do século 19, mas só foi intensificada mesmo nos anos 1860. A chegada de uma classe mais abastada está relacionada com o crescimento da cidade, impulsionado principalmente pela construção da estação ferroviária no bairro Valongo da São Paulo Railway. Essa novidade facilitou o escoamento de café para o mercado internacional pelo Porto de Santos e tornou a cidade uma referência também para a entrada de produtos e mercadorias de outros países.
Como consequência desse crescimento econômico, aumentou-se também a quantidade de trabalhadores portuários (alguns recém libertos da escravidão) e de imigrantes, que se instalavam em Santos, mais especificamente perto do porto, exatamente onde moravam as famílias mais ricas naquela época.
Em busca de mais tranquilidade, essa comunidade mais abastada acabou se mudando para o Paquetá na segunda metade do século 18, e dando uma roupagem europeizada ao bairro, com casarões e palacetes de estilo neoclássico, conforme consta na análise do trabalho de arqueologia da A Lasca ao qual o Estadão teve acesso.
“As famílias mais abastadas eram muito grandes, e tinham o hábito de adquirir conjuntos de louças finas que eram muito volumosos também,” afirma a arqueóloga Lucia Juliani, diretora da A Lasca, explicando que até os achados de peças semelhantes, como se pertencessem a um kit, revelam esse traço elitizado de quem vivia ali naquela época. “Quando atuamos em outros sítios arqueológicos que antigamente eram ocupados por pessoas com menor poder aquisitivo, a gente costuma encontrar louças de tipos diferentes, unidades distintas de um tipo de peça.”
Com o contínuo crescimento da cidade e mudanças na dinâmica populacional de Santos, essas famílias optaram, no começo do século 20, se mudar do Paquetá para outros espaços mais afastados do centro e da área portuária, como os bairros Boqueirão e Gonzaga, caracterizados por serem mais calmos. Nessa mudança, acabaram deixando para trás a série de pertences no que hoje se tornou um sítio arqueológico.
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Sítio Arqueológico Paquetá pode ter sido um antigo terreno baldio
Segundo Marcelo Manfrini, o local onde se encontra o Sítio Arqueológico Paquetá pode ter sido, durante um período de tempo que corresponde ao das peças encontradas, um terreno baldio usado para o descarte do lixo de quem morava nas casas do bairro. Mas tudo isso, ressalta ele, é uma tese que ainda precisa de maiores comprovações.
“A gente encontrou um mapa de 1890 que aborda o quarteirão onde a gente encontrou o sítio. Esse mapa mostra que, exatamente no terreno onde está o sítio Paquetá não havia nenhuma edificação, mas havia casas imediatamente ao lado, em frente e atrás do terreno”, diz o arqueólogo.
“Isso que me leva a pensar que essa área do sítio (arqueológico) era um antigo terreno baldio que estava ao lado dos casarões onde vivia essa elite. É um período que também não tinha coleta de lixo. Então, as pessoas precisavam descartar o seu lixo em algum lugar, e era conveniente jogar isso nos terrenos baldios ao lado da residências”, acrescenta.
Manfrini diz que é necessário encontrar mapas do começo do século 20 para comprovar a sua teoria, e que registros desta época ainda não foram localizados. “Os mapas seguintes que encontramos já mostram uma urbanização de 1950″, lamenta.
Peças vão para museu de Monte de Mor, interior do Estado
Todas as peças já passaram pelo processos laboratoriais, foram catalogadas e se encontram na sede da A Lasca no aguardo para serem transferidas para o Museu Municipal Elisabeth Aytai, de Monte Mor (a 200 quilômetros de Santos). O local servirá, por enquanto, como instituição de guarda do acervo.
Lucia Juliani, diretora da A Lasca, diz que a preferência inicial era que as peças ficassem o mais próximo do Sítio Arqueológico. “Santos tem duas instituições que podem receber acervo, e foram a nossa preferência inicial, mas nós tentamos contato com eles e não conseguimos”, diz.
Lucia explica que a entrega desse material precisa obedecer às regras determinadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como entregar a uma instituição de guarda que seja pública, que fique localizada dentro do Estado de São Paulo e seja apta a acolher as peças.
“Monte Mor é um município que tem um museu que pode receber o acervo, foram rápidos na resposta e estão preparados para atender essa demanda”, disse . “Mas isso não impede que instituições santistas reivindiquem e solicitem ao Iphan para que esse acervo volte para Santos. Isso seria o mais correto e o ideal.”
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