Estelionato sentimental, como o do golpista do Tinder: Veja relatos de vítimas e o que fazer

Na Justiça de São Paulo, há dezenas de processos contra homens que fingiam ter planos de relacionamento para enredar mulheres em uma trama de dívidas

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Elas acreditavam que era amor, mas acabaram sozinhas e endividadas. O estelionato sentimental é um nome novo para uma prática criminosa antiga e que ganha impulso com as redes sociais. Vítimas procuram reparação na Justiça – os casos podem levar à indenização por danos materiais e morais e alguns terminam até em prisão.

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Na última semana, a história de um estelionatário que enganava mulheres por meio de aplicativos de relacionamento ganhou repercussão. Renan Augusto Gomes, de 35 anos, foi preso por aplicar golpes em sites e redes sociais. Ao menos sete mulheres já haviam registrado queixa formal contra Gomes até a quinta-feira, 29, na capital e no interior. Uma das vítimas de Gomes chegou a ter prejuízo superior a R$ 200 mil.

Histórias desse tipo não são incomuns: só na Justiça de São Paulo, há dezenas de processos contra homens que fingiam ter planos de relacionamento para enredar mulheres em uma trama de dívidas. O tema também ganhou espaço no Congresso: um projeto de lei, o 6444/2019, em debate visa a tipificar o crime de estelionato sentimental, quando a vítima é induzida a entregar bens com a promessa de constituir uma relação afetiva.

Ações na Justiça tentam provar, por meio de extratos bancários e fotos de conversas na internet, que as vítimas desse tipo de abordagem sofreram não apenas um golpe financeiro, mas também tiveram prejuízos emocionais. Ou seja, foram induzidas a acreditar em um relacionamento que, na verdade, era apenas de fachada.

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Não há ainda um levantamento robusto sobre o perfil das vítimas de estelionato sentimental, mas a maior parte dos casos mapeados na Justiça paulista envolve mulheres enganadas por homens. Em muitas ocorrências, o relacionamento chega a ser duradouro e só depois de meses, quando já desembolsaram milhares de reais, é que as vítimas percebem o golpe. Foi isso que mostrou também o documentário O Golpista do Tinder, da Netflix, que fez sucesso no início do ano.

Galã do Tinder: perfil de Renan Augusto Gomes em um dos aplicativos de relacionamento Foto: Reprodução

Aconteceu com a estudante Giovana (nome fictício), de 26 anos. Em agosto, ela ganhou uma ação na Justiça contra o ex-namorado depois de provar que foi vítima de estelionato sentimental – o processo na esfera cível rendeu indenização de R$ 25 mil por danos materiais e R$ 10 mil por danos morais.

Ela conheceu o homem que se tornaria seu namorado pelo Facebook em 2020 – foi ele quem mandou uma mensagem primeiro, pedindo que se encontrassem. Giovana aceitou, eles se viram e começaram a ficar. Tudo ia bem: ele era carinhoso, fazia planos, e o casal passou a namorar. Foi então que, depois de meses, o homem contou que sonhava em ter uma moto.

“Ele dizia que se a gente tivesse essa moto, iria para vários ‘rolês’, para a praia, tomar açaí, me iludia”, lembra ela. Certo dia, em um jantar a dois, ele pediu que ela fizesse empréstimo para comprar o veículo e disse que ajudaria a pagar.

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Em meio à lábia do companheiro, Giovana, que nunca tinha feito dívidas – nem mesmo para parentes próximos –, aceitou pegar R$ 14 mil emprestados. A moto foi comprada em nome de um familiar do namorado e foi vendida depois, sem que ela recebesse nada.

Segundo conta, sempre que ela reclamava dos gastos ou de outros problemas do relacionamento, ele ficava nervoso e fazia Giovana acreditar que quem estava errada era ela. Com medo de colocar todo o relacionamento a perder, a jovem se calava.

O namorado estava cada vez mais ausente, sumia nos finais de semana, ao mesmo tempo em que fingia fazer planos a dois: para se casar com Giovana, sugeriu que ela depositasse R$ 5 mil na conta dele – o dinheiro, afirmava, seria usado para comprar um apartamento.

Mergulhada em dívidas, a jovem descobriu que ele tinha outra namorada – para quem também pedia dinheiro. Ela terminou o relacionamento e acionou a Justiça. “Minha cabeça girava, tentando entender por que aconteceu isso”, lembra. “Entrei em depressão, meu cabelo começou a cair, engordei bastante. Ele me deixou no fundo do poço, endividada.”

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Até hoje, quando recebe a fatura do empréstimo, Giovana se sente mal. No início, envergonhada, contou para poucas pessoas. “Não conseguia me olhar no espelho”, diz. Quitar as dívidas, afirma, agora é uma forma de colocar um ponto final na história.

“Se você está na rua e te roubam, você corre atrás e conquista de novo. O problema é passar por isso com uma pessoa que dormia com você , que falava que te amava”

Giovana, estudante

Embora a causa tenha sido ganha na Justiça, na prática ela e outras vítimas podem ter dificuldades para receber os valores, explicam especialistas. Em casos de processos na esfera cível, a Justiça pode bloquear as contas de quem cometeu o estelionato como forma de pressionar o pagamento, mas não há punição criminal caso ele não arque com os débitos.

Coordenador da comissão de política criminal e penitenciária da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Pedro Martinez explica que a decisão sobre a esfera – se cível ou criminal – em que casos do tipo podem ser julgados depende da vontade da vítima.

“Na esfera cível, as vítimas podem conseguir reparação do dano, o dinheiro de volta e indenização moral por causa de tudo o que passaram.” Já na esfera criminal, se provado o estelionato, o golpista pode acabar preso – como ocorreu com Renan Augusto Gomes.

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Segundo Martinez, a estratégia de advogados que defendem vítimas de estelionato sentimental é reunir informações que demonstrem a intenção do golpista de causar mal à vítima para obter vantagem. A linha pode ser tênue entre o que é considerado estelionato e o que são apenas ajudas financeiras consensuais entre um casal.

“Uma das coisas que ajudam a caracterizar é quando o autor usa informações falsas sobre sua identidade, quando monta um perfil falso na rede social. Ou se a relação parte para o presencial e ele mantém uma identidade que não é a dele. Fala que tem uma profissão quando na verdade não tem”, exemplifica Martinez.

Para Thalyta Lima, advogada que atuou em um caso de estelionato sentimental em São Paulo, um dos desafios é que as vítimas consigam levar os casos na Justiça. Por medo ou vergonha, é comum que as mulheres não busquem reparação. “Existe um padrão entre os homens: eles conseguem mexer muito com o psicológico delas. Elas ficam frágeis, sem saber o que fazer. Não têm forças para buscar um advogado.”

A argumentação jurídica, diz ela, inclui mostrar o vínculo entre a vítima e o estelionatário por meio de “prints” de conversas em aplicativos e extratos bancários. O caso que defendeu teve decisão favorável à indenização por danos morais e materiais.

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‘Era apaixonada e ele sabia’, diz mulher que perdeu mais de R$ 40 mil

A bancária Maria (nome fictício), de 32 anos, conta que até tentou ser alertada sobre os golpes praticados pelo ex-namorado, de 40, por outras mulheres. Mas, na época, não dava ouvidos. “Elas vinham me falar que ele fazia a mesma coisa com elas, que o conheceram em um aplicativo de relacionamento e que ele criava outro perfil, com outro nome e idade.”

Maria ajudou o homem que considerava seu namorado a pegar empréstimo de R$ 20 mil, a comprar celulares e financiar um carro. “Ele pedia e eu falava ‘sim’. Não conseguia falar ‘não’ porque, quando eu falava não, ele começava a me chantagear. E eu tentava agradar”, diz.

Segundo ela, o namorado também fingia ter intenção de construir um futuro juntos. “Já estávamos procurando apartamento, pesquisando com corretoras, vendo até móveis planejados”, lembra Maria. “Eu era apaixonada e ele sabia disso. Sabia por qual caminho ir para me conquistar.”

Quando finalmente caiu em si, ela entrou em desespero. “Tinha de pagar parcela do carro, empréstimo. Chorei demais.” À Justiça, Maria argumentou que foi vítima de estelionato sentimental e conseguiu sentença favorável para receber indenização – o valor, no entanto, ainda não foi pago: “Meu vínculo com ele agora são as dívidas”.

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Projeto de lei sobre o tema é desnecessário, avalia especialista

O projeto de lei que tipifica o estelionato sentimental no Código Penal não é necessário, na opinião de especialistas em Direito. Isso porque o próprio Código Penal já prevê o crime de estelionato – e o sentimental estaria abarcado nesta tipificação geral.

O PL foi aprovado na Câmara dos Deputados em agosto, mas ainda tem de passar pelo Senado. “O estelionato já abarca o que vem sendo chamado de estelionato sentimental”, argumenta Pedro Martinez, da OAB-SP.

Para ele, trata-se de “populismo penal”. “As autoridades buscam uma maneira fácil e ineficiente de dar resposta. Não surte o efeito desejado pela população.” Ele destaca que, para fazer frente a esses crimes, é mais importante equipar a polícia e o Judiciário para investigar suspeitos e localizar quadrilhas que podem estar por trás desses golpes.

Estelionato sentimentais ainda costumam ser menosprezados pelas autoridades policiais. Vítimas dizem que, ao procurarem delegacias com a queixa, ouvem que nem adianta registrar ocorrência porque investigações nessa linha não dão resultado.

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O que fazer se foi vítima de estelionato sentimental

- Consulte um advogado para avaliar os melhores caminhos para reverter a situação. Isso deve ser feito antes de registrar um boletim de ocorrência na polícia, na opinião de Martinez.

- Reúna provas sobre a abordagem. Podem ser prints de conversas no WhatsApp, áudios e extratos bancários

- A decisão sobre bloquear ou não o contato deve ser tomada caso a caso. Algo importante a se observar nesses casos é a vulnerabilidade da mulher a investidas ainda mais violentas (por exemplo, se ela vive com o agressor); uma orientação jurídica pode ajudar a tomar essa decisão

- É preciso atenção redobrada se houver compartilhamento de dados pessoais com o golpista. O fato de registrar a ocorrência na polícia ajuda a vítima a se precaver de uma responsabilização sobre fraudes futuras cometidas em seu nome, mas não garante que ela não terá problemas.

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- A vítima deve avaliar também se há necessidade buscar algum tipo de apoio emocional ou orientação psicológica para lidar com o trauma.

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