Estupros batem recorde e Brasil registra 8 ocorrências por hora; por que casos crescem?

Dados de 2022 revelam ainda que aproximadamente oito em cada dez vítimas de violência sexual têm menos de 18 anos. Feminicídios também estão em alta

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Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:

A cada hora, ao menos oito pessoas são estupradas no Brasil, segundo dados de 2022 reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 74.930 casos registrados no ano passado, o maior número desde 2009, quando houve mudança na legislação sobre esse tipo de crime.

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As estatísticas – coletadas pelos pesquisadores junto das secretarias de segurança e divulgadas nesta quinta-feira, 20 – revelam ainda que aproximadamente oito em cada dez vítimas de violência sexual têm menos de 18 anos. Os criminosos, na maioria dos casos, são parentes. Os feminicídios também registraram alta.

“É o maior número de estupros já registrado na história”, afirma Samira Bueno, diretora executiva do Fórum. Conforme a entidade, 10,4% das vítimas de violência sexual eram bebês e crianças de zero a 4 anos. Ao mesmo tempo, 17,7% tinham entre 5 e 9 anos e 33,2%, entre 10 e 13 anos. Ou seja, seis em cada dez vítimas eram adolescentes com no máximo 13 anos.

Quantos casos de estupro ocorrem no Brasil?

  • 2021: 68.885;
  • 2022: 74.930.

A taxa total de estupros subiu 8,2% ante 2021 e chegou a 36,9 casos para cada 100 mil habitantes. A maior alta foi justamente entre vulneráveis (8,6%), que correspondem à grande maioria das vítimas (56,8 mil).

Os Estados que tiveram maior aumento foram Amazonas (37,3%) e Roraima (28,1%), Estado que também tem também a maior taxa (114,1). Em números absolutos, São Paulo lidera a lista, com 12,6 mil casos notificados no ano passado.

Mulheres marcham em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo Foto: Felipe Rau/Estadão - 08/11/2020

“Há alguns anos, divulgamos que estupros tinham ultrapassado os homicídios, chegando na casa dos 50 mil. Isso foi um grande escândalo na época. Agora, se continuar desse jeito, daqui a pouco vamos noticiar 80 mil casos”, afirma Samira.

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O Anuário do Fórum revela que os assassinatos tiveram 47.508 registros no último ano: trata-se de patamar ainda alto, com cerca de 130 casos por dia, mas que tem apresentado quedas sucessivas.

A pesquisadora afirma que, quando o assunto é violência sexual, a primeira hipótese levantada sempre é a de as vítimas se sentirem mais encorajadas a falar: ou seja, quanto mais se fala sobre isso, mais pessoas denunciam. A pesquisadora não descarta que isso ajuda a diminuir a subnotificação, mas afirma que há outros fatores que indicam que está ocorrendo aumento na incidência desse tipo de crime.

“Quando há crescimento dos acionamentos do 190, dos crimes de ameaça, agressão, pedidos de medidas de urgência solicitadas e deferidas, tudo nos aponta para, de fato, um crescimento da violência contra mulher”, afirma a pesquisadora.

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Ela também aponta que o próprio perfil das vítimas indica que a alta histórica não se dá só por conta de um aumento das denúncias em decorrência de um maior empoderamento das mulheres. “São crianças muito pequenas, que muitas vezes nem são capazes de identificar ou reconhecer o abuso que estão sofrendo.”

Nos últimos meses, chamaram a atenção as condenações do empresário Thiago Brennand, acusado de estuprar mulheres, além de outras agressões, que está detido em São Paulo – ele diz ser vítima de uma prisão injusta. Neste mês, ganhou projeção o caso do ex-BBB Felipe Prior, condenado a seis anos de prisão por estupro – a defesa diz que pode recorrer e que o réu é inocente.

Quando tem aumento dos acionamentos do 190, dos crimes de ameaça, de agressão, dos pedidos de medidas de urgência solicitadas e deferidas, tudo nos aponta para, de fato, crescimento da violência contra mulher.

Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança

Em março, o Fórum soltou um relatório de vitimização que apontou que um terço das mulheres já sofreu violência física ou sexual de parceiros. Além disso, o documento indicou crescimento de todas as formas de violência contra mulher no período recente.

Segundo Samira, ainda que as medidas sanitárias não tenham sido tão amplas em 2022, quando o País já vivia desaceleração da pandemia de covid-19, muitas denúncias ainda podem corresponder a casos cometidos antes do ano passado ou mesmo impulsionados por esse período. Estudos de outros países apontam que, quando escolas são fechadas ou há isolamento social é mais rígido, os registros caem. Tempos depois, os casos tendem a explodir.

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“Não sabemos se esses casos explodem porque são pessoas que foram vítimas na pandemia e, quando começaram a frequentar a escola, o profissional de educação percebe e essa denúncia vem à tona”, diz a pesquisadora. “Ou se são casos que começaram na pandemia e que, eventualmente, continuaram ocorrendo – essa é outra característica da violência sexual contra crianças”, afirma.

Os dados mostram que, em geral, os estupros possuem uma dinâmica intrafamiliar. “De todos os estupros no ano passado, menos de 10% aconteceram na rua”, diz Samira. Ela afirma que, no imaginário social, muitas mulheres temem ser vítimas quando estão em espaços públicos. “É evidente que isso existe, mas é importante mostrar que, quando estamos falando dessa forma de violência, o maior perigo está dentro de casa. E os principais autores são familiares.”

Cresce proporção de vítimas negras

Praticamente nove em cada dez vítimas de estupro são mulheres (88,7%). Além disso, pessoas negras seguem sendo as principais vítimas da violência sexual, e houve crescimento da proporção em relação a 2021. Conforme o anuário, 56,8% das vítimas eram pretas ou pardas (no ano anterior, eram 52,2%).

Para Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, isso revela uma particularidade a mais sobre esse tipo de crime. “Mostra o quanto o racismo estrutural é forte no perfil dessas vítimas. A maior parte das mulheres vítimas de feminicídio são negras, mas especialmente as vítimas de homicídios femininos”, diz.

Ela afirma que isso fica ainda mais claro na classificação dos crimes como feminicídios. “Em um caso em que uma mulher se relacionava a alguém relacionado ao crime organizado, e era uma relação íntima e conjugal, e ela é assassinada, isso é um feminicídio”, afirma.

“Mas é muito mais fácil para a autoridade policial vincular essa mulher a uma criminalidade urbana, a uma criminalidade organizada, como se ela também fizesse parte desse contexto. É quase como se as mulheres negras fossem vítimas menos virtuosas do que as mulheres brancas.”

A pesquisadora aponta que, além da pandemia, há outras duas outras hipóteses para o crescimento considerável dos crimes contra mulheres. “2022 foi o ano em que o governo federal teve o menor investimento em políticas de proteção e enfrentamento da violência contra as mulheres. Foi o menor em 10 anos”, diz. “Além disso, a gente não pode deixar de mencionar o crescimento e o fortalecimento de grupos ultraconservadores, que elegem o tema, como, por exemplo, igualdade de gênero, como o tema a ser combatido.”

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É algo que até se relaciona, segundo a pesquisadora, com ataques a escolas, marcados por misoginia e pelo avanço de comunidades radicais, segundo pesquisadores. “Na medida que a gente avança em intenções e ações de promoção da igualdade de gênero, as violências infelizmente aumentam”, diz. Segundo ela, esse movimento é chamado internacionalmente de “backlash” (represália). “Tem a ver com movimentos ultraconservadores, com os red pill, que a gente tem visto nas redes. É como se fosse uma reação para tentar restabelecer uma suposta superioridade masculina.”

Feminicídios crescem 42,6% em São Paulo

Os feminicídios cresceram 6,1% no ano passado. Foram 1.437 casos no período, ante 1.347 em 2021. Com a nova alta, a taxa chegou a 1,4 ocorrências a cada 100 mil habitantes, com destaque para Rondônia (onde o índice bateu 3,1) e Mato Grosso do Sul (2,9). São Paulo, ao lado do Rio Grande do Norte, tem a menor taxa (0,9), mas houve aumento expressivo no ano passado (42,6%). Foram 195 registros.

Em setembro do ano passado, o estudante de Medicina Ezequiel Lemos Ramos, de 39 anos, matou a tiros a ex-mulher no Parque São Rafael, zona leste de São Paulo. Como mostrou o Estadão na época, a vítima tinha medida protetiva e morava escondida do ex-companheiro, mas foi emboscada por ele quando foi buscar os dois filhos na escola – o mais novo, de 2 anos, também morreu. O caso repercutiu pela brutalidade, e o autor foi preso pela polícia.

Casos de feminicídio cresceram em São Paulo Foto: Divulgação / Governo de São Paulo

“O grande desafio que esse Anuário traz é como a gente protege essas mulheres se essas violências acontecem em um contexto doméstico e privado”, afirma. Ela diz que indicadores acessórios, como número de medidas protetivas solicitadas, também tiveram alta. Destaca também que só de registros de stalking foram 147 por dia no ano passado, o que cobra uma atuação mais ampla. “Demanda uma atuação em rede não só dos profissionais, mas de pessoas próximas dessas mulheres.”

Só um ano depois do crime, a dona de casa Hilda Amália de Souza, de 62 anos, moradora de Franca, no interior de São Paulo, pode ir sem sentir medo ao cemitério visitar o túmulo da filha, a manicure Laísa Cristina de Souza, de 35.

No último dia 14, ela recebeu a notícia de que o autor do feminicídio, o sapateiro Leandro Antônio da Silva, de 37 anos, ex-companheiro de Laísa, foi preso. Ele estava foragido desde o dia do crime, em 16 de julho do ano passado. “Não alivia a dor, mas tirou um peso, porque a gente tinha medo que ele voltasse para fazer mais mal”, disse a mulher.

Laísa foi morta na frente da mãe, de uma irmã e de uma colega. “A gente estava sentada na frente de casa, conversando numa boa. Ele chegou do nada, já com a arma na mão e foi atirando. Ela tentou escapar, mas ele foi atrás”, lembrou.

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A gente estava sentada na frente de casa, conversando numa boa. Ele chegou do nada, já com a arma na mão e foi atirando. Ela tentou escapar, mas ele foi atrás.

Hilda Amália de Souza, mãe de Laísa Cristina de Souza, vítima de feminicídio

Laísa tentou se proteger atrás da amiga, mas foi atingida no lado do corpo e caiu. O ex-marido se aproximou e atirou mais três vezes. “Pensei que ele ia matar todo mundo. Antes ele tivesse me matado também. A colega dela ficou muito tempo no hospital, quase morreu”, disse a mãe. Segundo ela, a filha tinha sido agredida um pouco antes do crime.

Outra familiar, que pediu para não ser identificada por medo, disse que a manicure era vítima de relação abusiva. “Uns dias antes de matar, ele já tinha amarrado e torturado ela. Insistimos para que ela procurasse a polícia e pedisse medida protetiva, mas ela achava que seria pior. Ela vivia com medo.”

O autor vai responder por feminicídio e tentativa de homicídio. A reportagem não conseguiu contato com a defesa do suspeito.

Como iniciativas recentes que ajudam a combater esse crime, Juliana destaca a criação da Lei do Feminicídio, de 2015, e mecanismos para facilitar a solicitação de medidas protetivas urgentes, além de mudanças na forma de atender as vítimas.

“O Piauí, por exemplo, é um Estado em que todos os assassinatos de mulheres são imediatamente vistos como feminicídios. A partir da investigação, você vai analisando e excluindo se aquilo, de fato, não é um feminicídio. Mas a premissa é que todo assassinato de mulher é feminicídio. Isso é um avanço sem tamanho”, diz.

Ainda com esses avanços, a pesquisadora aponta ser importante ir além e investir ainda mais na capacitação dos policiais para adquirir a chamada “lente de gênero”, para poder identificar o feminicídio. “A gente precisa aprimorar essa lente para aprimorar o registro e a investigação dos assassinatos de mulheres”, diz.

“Os autores são padastros e pais, avós. Vizinhos também, mas especialmente familiares. A gente está falando de violências que acontecem dentro de casa. Não só em casa fisicamente, mas no lar, pensando nas relações familiares.”

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Juliana destaca que São Paulo possui um manual de investigação de feminicídio elaborado pela academia da Polícia Civil e um programa de formação que coloca um policial em um contexto de atendimento a esse tipo de crime.

“O Distrito Federal também incluiu, na formação dos policiais militares, de forma permanente, a formação de gênero”, exemplifica. Ela destaca também a importância de ter mulheres policiais, até para qualificar o olhar das polícias. “Não basta ter uma unidade especializada para atender uma mulher em situação de violência. Todo e qualquer policial tem que ser capaz de dar um bom atendimento.” /COLABOROU JOSÉ MARIA TOMAZELA

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