PORTO ALEGRE - Na fila e dentro do elevador de um edifício comercial do centro de Porto Alegre, Nilce Machado, 53 anos, é uma mulher discreta. Sua presença talvez fosse percebida se as centenas de pessoas que passam pelo local todos os dias se dessem conta de que ela esteve no centro de uma polêmica que levou três diretores do Ministério da Saúde a deixarem seus cargos durante a semana e pôs o próprio titular da pasta, Alexandre Padilha, sob uma série de críticas de organizações voltadas à defesa dos direitos humanos. Mas notoriedade é algo que não lhe interessa. Ela vai ao local quase todos os dias por uma causa. Como presidente do Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) atua na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, na defesa dos direitos civis e no incentivo à autoestima das profissionais do sexo, como ela.
Foi nessa condição que Nilce foi a João Pessoa (PB) em março, a convite do Ministério da Saúde, para participar da produção de material de divulgação de medidas de prevenção da saúde de populações específicas e autorizou o uso de sua imagem e de uma frase que vive repetindo - "Eu sou feliz sendo prostituta" - para uma campanha destinada a reduzir o preconceito contra as prostitutas e orientá-las sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. A peça chegou a aparecer no portal do ministério em datas próximas ao Dia da Prostituta, 2 de junho, mas foi retirada da internet no dia 4 por decisão de Padilha. O diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do ministério, Dirceu Greco, foi exonerado. Em solidariedade, os diretores adjuntos Eduardo Barbosa e Rui Burgo pediram demissão na quarta-feira.
"Fiquei aborrecida", revela Nilce, ao falar da atitude do ministro. "Saí de minha casa, fui lá, não me omiti e, se fui como profissional do sexo, em campanha para um público específico, não entendo por que não posso falar sobre prostituição", prossegue, afirmando que não estará mais disponível para campanhas do órgão. E quanto à frase que provocou a polêmica, confirma tudo. "Sou prostituta e feliz porque adquiri muito conhecimento, é na profissão que consigo ajudar minhas colegas, ganho meu dinheiro, não tenho patrão, faço meu horário, tenho minha liberdade, cuido da minha saúde", relaciona. "Além disso, tenho uma bela família que me aceita como sou, prostituta e feliz", repete.
Até chegar à condição de militante da causa, Nilce percorreu um caminho de perdas e trabalho precoce, amores desfeitos e muita determinação para preservar sua característica independência. Nascida em Três de Maio, no oeste do Rio Grande do Sul, ficou órfã de mãe aos 9 anos e de pai aos 11 anos. Depois de morar na casa de tios por algum tempo, alugou uma casa com uma irmã e uma colega, aos 14 anos. E estudou até concluir o ensino médio. Apesar da pouca idade, passou a trabalhar como ajudante de limpeza de um supermercado. Saiu de lá quando era gerente, aos 18.
Quando deixou o supermercado, foi morar em Horizontina. Já era mãe da primeira filha, que decidiu criar sozinha depois de flagrar uma traição do namorado durante a gravidez. Em menos de um ano mudou de cidade de novo e foi para Campo Bom, no Vale do Rio dos Sinos, trabalhar na indústria calçadista. Lá teve outro namorado e a segunda filha, que o pai assumiu somente quando a criança tinha 6 meses. Depois de cinco anos na linha de produção de sapatos e tênis, decidiu deixar as filhas morando com o pai e os avós, que haviam mudado para Campo Bom, e foi procurar emprego em Porto Alegre.
Na capital, a vida de Nilce deu mais uma guinada. De uma troca de olhares em um terminal rodoviário urbano nasceu uma paixão. Em pouco tempo, o namorado sugeriu que ela fizesse programas. Depois de alguma relutância, topou e fez de uma esquina da rua Vigário José Inácio seu ponto. O primeiro cliente foi um homem de 65 anos. "Me senti estranha, mas no dia seguinte fui de novo e nunca mais saí", recorda. "Ali eu ganhava dinheiro e levava para minhas filhas."
A história com o gigolô durou sete anos. Depois teve outra, com um cabeleireiro, que durou nove anos, até ele morrer. Nesse período Nilce adquiriu um terreno em Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, fez sua casa e levou as filhas para morar com ela. Hoje não quer mais ter marido, mas diz que forma uma família feliz, em meio às duas filhas, dois genros e três netos. Não tem muito contato com vizinhos, mas frequenta um centro espírita na comunidade e dedica todo o tempo livre a cuidar dos netos.
As atividades profissionais estão ambientadas a 15 quilômetros de casa. Nilce deixa Eldorado do Sul e vai para o lado leste do Guaíba, trabalhar de segunda a quinta-feira à tarde na remodelada Praça da Alfândega e em hotéis e motéis de Porto Alegre, longe do lar. "Prefiro homens de mais de 35 anos e não gosto de sair com rapazes, porque eles querem mais sexo e eu quero mais conversa e dinheiro", revela. Por um mínimo de R$ 50 o cliente sabe que terá sexo convencional - Nilce não trabalha com fetiches - e pelo menos um bom papo, mas nunca na casa de Nilce nem na do cliente.
"Como prostituta me sinto como uma psicóloga", valoriza. "Os clientes me procuram, vamos ao hotel e às vezes nem fazemos sexo; eles falam de seus problemas, demonstram preocupações com possível envolvimento dos filhos com drogas, desabafam, pedem conselhos, porque sabem que eu tenho conhecimento de prevenção de doenças."
Foi na mesma Praça da Alfândega, no final dos anos 1980, que Nilce percebeu que tinha de lutar por cidadania e pela união da categoria. Em uma batida da Brigada Militar ela não correu como suas colegas, como era costume na época, e por birra de um policial ficou algemada por quase toda uma tarde. "Fiquei lá, parada, pensando: ‘Se um dia a Princesa Isabel libertou os escravos, um dia isto aqui também vai mudar’".
Naqueles tempos em que surgiam as primeiras organizações de apoio e prevenção contra a aids, as prostitutas se organizaram em torno do NEP. Desde então a militância conseguiu muitos avanços. Nilce cita a conscientização para o uso da camisinha, que bloqueou não apenas as doenças sexualmente transmissíveis como também reduziu sensivelmente o número de abortos entre as profissionais. "Hoje, quando uma mulher é infectada quase sempre é pelo contato com namorados, e quase nunca por relações com clientes."
"O NEP foi criado para a prevenção, mas logo percebemos que teríamos de trabalhar também contra a violência e a discriminação", recorda Nilce. Os problemas não estão resolvidos, mas hoje a violência é menor do que há 25 anos porque a polícia não costuma mais bater em prostitutas nas ruas, e elas podem denunciar violações que sofrem. "A discriminação também diminui: as pessoas já não fazem chacota quando passam por nós", diz a presidente do NEP.
Nilce afirma ainda que, como ela, muitas prostitutas passaram a ter orgulho da profissão. Entendem que ajudam a sociedade disseminando a cultura da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, e isso melhora sua autoestima. "Assumimos nossa cidadania", conclui.
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