'EUA podem ter duplo mergulho'

Robert Shiller: economista e professor da Universidade Yale[br]Economista considera que a recuperação econômica ainda não é sólida e se opõe às reformas propostas por Obama

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Por Patrícia Campos Mello e correspondente em Washington

A confiança nos Estados Unidos não voltou de forma sólida e há uma possibilidade "significativa" de a economia voltar a entrar em recessão. Esse é o temor do economista Robert Shiller, que prevê uma alta taxa de desemprego no país por um bom tempo. Shiller é autor do livro Exuberância Irracional e um dos maiores estudiosos de bolhas financeiras. Além de dar aulas na Universidade Yale, ele organiza o índice Case-Shiller de preços imobiliários, um dos mais atentamente acompanhados. Ao lado de economistas como Frederic S. Mishkin, da Universidade Columbia, e Raghuram Rajan, da University de Chicago, Shiller faz parte do grupo de trabalho que está formulando propostas para a reforma das regras financeiras. Ele se opõe às regulamentações anunciadas pelo presidente Barack Obama esta semana, que propõem medidas semelhantes às da Lei Glass Steagall, legislação da Grande Depressão que proibia bancos de varejo de atuarem como banco de investimento, derrubada em 1999. Mas, para ele, a crise deixou clara a necessidade de democratizar o mercado financeiro com normas que protejam os investidores comuns. A seguir, a entrevista que Shiller concedeu, por telefone, ao Estado. O sr. participa do grupo Squam Lake de estudos sobre regulação financeira. A volta da Lei Glass Steagall ou algo semelhante, como proposto por Obama, é essencial para evitar crises no futuro?Não acho que uma legislação desse tipo aborde de forma correta o problema. Eu me concentraria nas causas imediatas da crise. Me parece que compartimentalizar as atividades financeiras é uma coisa antinatural. Parece eficiente os bancos de varejo também fazerem operações de banco de investimentos. Acho que uma mudança essencial é aumentar as exigências de capital para os bancos. Haverá consenso político suficiente para aprovar neste ano as reformas financeiras?As negociações têm sido lentas e difíceis. Houve um projeto de lei aprovado na Câmara em junho, mas ele não inclui uma série de coisas importantes. No Senado, o projeto ainda está tramitando e seu principal patrocinador, o senador Chris Dodd, anunciou que vai se aposentar neste ano. Eu tenho mais esperanças nas decisões dos países do G-20 sobre regulamentação financeira e nas propostas do Conselho de Estabilidade Financeira da Basileia. Espero que os países adotem as recomendações. Ao mesmo tempo, há um movimento antibancos nos Estados Unidos. Há perigo de serem adotadas regulamentações rígidas demais?Olha, uma das regulamentações em estudo é uma agência de proteção ao consumidor de produtos financeiros. Em princípio, isso é uma coisa boa, mas ela pode ser estruturada de uma maneira que vá sufocar inovações e ser rígida demais. Mas é difícil saber que tipo de inovações põem o sistema todo em risco, como ocorreu com alguns derivativos?Sim, é muito difícil. Nós vivemos num estado de complacência durante muito tempo, o que levou a uma série de erros. Por exemplo, agências de classificação de risco dando rating AAA (o máximo) a papéis que depois entraram em default. Já há algumas modificações, mas ainda temos o problema fundamental de medir riscos. Nós ficamos complacentes demais, riscos reapareceram e as previsões de emissores de papéis e agências de classificação se mostraram otimistas demais. É possível criar regulamentações que sejam um desincentivo para apostas arriscadas demais?Sim. Por exemplo, o secretário de Justiça de Nova York , Andrew Cuomo, proibiu o "shopping de agências de riscos". Funcionava assim: uma pessoa está criando um título (lastreado em hipoteca ou para se proteger de calote de uma empresa) e o emissor do papel liga para a agência de risco e diz: estou pensando em emitir tal papel, que classificação você me daria? Se a agência responde B, ou algo baixo, o emissor simplesmente responde: ok, vou procurar outra agência que me dê classificação maior. Era óbvio que isso distorcia as classificações de risco, e Cuomo proibiu.Quão preocupado o sr. está com o déficit do orçamento dos Estados Unidos?No momento, a dívida dos Estados Unidos é encarada como um investimento seguro, mas, obviamente, à medida que essa dívida cresce, essa sensação de segurança fica ameaçada. Mas ainda vai demorar muito até chegarmos a esse ponto. Na realidade, eu acho que deveríamos ter estimulado mais a economia e ainda teremos de fazer isso, mesmo que signifique aumentar ainda mais a dívida. A relação dívida/PIB do Japão equivale a dois anos de PIB, a nossa é aproximadamente metade disso. Não é algo que se almeje, mas, dada a situação econômica, teremos de nos endividar mais.Isso significa que o país vai precisar de um segundo pacote de estímulo?Acho que sim, porque estou preocupado com a possibilidade de uma recessão de duplo mergulho. Existe uma possibilidade significativa de termos uma recessão duplo mergulho. A confiança está voltando, mas não sei se de uma forma sólida. O mercado imobiliário teve certa recuperação, os preços voltaram a subir, o que é encorajador, mas nos EUA isso foi apoiado em grande parte por incentivos do governo (incentivos fiscais para compras de imóveis, que já não estão mais em vigor). Agora, a alta dos preços imobiliários começou a desacelerar, e podemos ver uma queda maior.Quais são os fatores que o levam a se preocupar com uma recessão de duplo mergulho?No momento, a economia parece melhorar, mas pode não melhorar rápido o suficiente, o que vai frustrar as pessoas, provocando queda nas vendas e nos preços imobiliários. A confiança não está firme. Temos um presidente que começou com aprovação altíssima, mas agora está caindo, estamos vendo raiva e desencanto, e esses sinais podem trazer fragilidade econômica. Ainda temos uma taxa de desemprego na faixa de 10%, e isso deve persistir. Mas, ao mesmo tempo, é difícil prever duplos mergulhos; houve poucos na história.Houve duplo mergulho em 1937, certo?Sim. Na Grande Depressão, o mercado acionário chegou ao fundo em 1932 e a economia, em 1933. Depois, houve um boom , interrompido em 1937. Foram quatro anos. Se algo assim ocorrer, só teremos o mergulho em 2011.E como o sr. vê o desemprego evoluindo neste ano?Não acho que vai melhorar de forma significativa neste ano, e pode se arrastar por anos em um nível alto. Essa é a grande preocupação, estarmos diante de uma recuperação bem lenta. Nos últimos tempos, temos visto nos ciclos que as contrações levam mais tempo e as recuperações são mais lentas.Qual é a maior lição dessa crise?Mercados financeiros são imperfeitos, mas necessários para uma economia saudável. Achei que as pessoas iam ter uma reação exagerada à crise e querer voltar a um estágio anterior, quando os mercados financeiros não eram tão integrados. Mas acho que não. Os países bem-sucedidos são aqueles que abraçam as inovações financeiras. Espero que a lição não seja que devamos ter raiva da comunidade financeira. Precisamos é democratizar as finanças, em primeiro lugar, com regulamentação eficiente, que proteja os investidores comuns. A crise enterrou de vez a teoria dos mercados eficientes?Essa teoria fazia parte da mentalidade de bolha, que pregava que os mercados se autocorrigiriam. Precisamos entender de uma vez que mercados são invenções do homem. Portanto, nem sempre funcionam bem, e por isso precisam de regras e medidas do governo para garantir que não serão usados da maneira errada.

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