Ex-goleiro e ativista negro, Aranha se firma como escritor; conheça trajetória

Autor de dois títulos de conteúdo antirracista, Mário Lúcio Costa, ou Mário Aranha, como assina suas obras, também é convidado para palestras em escolas e empresas

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

O ex-goleiro Mário Lucio Duarte Costa, o Aranha, já era um ativista negro antes de ter sido chamado de “macaco” em 2014. Ele era discreto com as palestras e até com os prêmios que recebia porque o racismo ainda é tabu no futebol. Com a aposentadoria dos campos, Aranha se firma como um escritor e palestrante comprometido com a educação antirracista.

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Vítima de um dos episódios de racismo mais traumáticos do futebol brasileiro, quando foi xingado de “macaco” por torcedores do Grêmio em uma partida da Copa do Brasil, em 2014, no Rio Grande do Sul, com injúrias captadas pelas câmeras de TV, o goleiro encerrou a carreira em 2018 pelo Avaí, depois de passar por Santos, Ponte Preta, Palmeiras e outros clubes.

Depois de pendurar as luvas, ele decidiu ir além das palestras que proferia nas escolas e instituições públicas. Nasceu o escritor Mário Aranha.

O ex-goleiro Aranha faz palestra para funcionários da construtora Tenda, na região central de São Paulo, no mês de novembro Foto: Alex Silva/Estadão

O livro Patrocínio, segundo título da carreira como escritor, conta a história de José do Patrocínio, uma das principais personalidades do século 19 na luta pelo fim da escravidão. O conhecimento e as informações do escritor foram adaptados para a linguagem infantil para auxiliar os professores na sala de aula. “A trajetória do José do Patrocínio mostra para as crianças negras que é possível ser qualquer tipo de coisa, não só jogador de futebol ou cantora”, argumenta o autor de 43 anos.

Em 2021, ele havia lançado o Brasil Tumbeiro, onde também reescreve a história dos negros no Brasil. Navios tumbeiros ou negreiros foram as embarcações que fizeram a travessia do Oceano Atlântico, da África ao Brasil, trazendo à força homens e mulheres negros escravizados. Tumbeiro vem de tumba: quase um quarto dos escravizados em cada viagem não resistia à fome, à doença e maus-tratos e morria nas viagens de até dois meses.

Aranha já lançou dois livros com conteúdo antirracista Foto: Alex Silva/Estadão

O livro tem feito sucesso dentro e fora do Brasil. A Biblioteca de Washington, nos Estados Unidos, entrou em contato por e-mail com a Editora Mostarda, responsável pela publicação, pedindo exemplares para seu acervo. Eles se interessaram pelo resgate de figuras negras que normalmente são apagadas ou diminuídas nos conteúdos tradicionais.

O impulso definitivo para colocar as ideias no papel veio da leitura de Quarto de despejo, obra-prima de Carolina Maria de Jesus que reúne 20 diários escritos pela mulher negra, mãe solteira, pouco instruída e moradora da favela do Canindé, em São Paulo. “Se não fosse por ela, eu nunca teria escrito o primeiro livro”, conta Aranha.

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A trajetória de Aranha, como escritor e palestrante, atrai a atenção de empresas que valorizam a diversidade racial. Em novembro, ele foi convidado para ser um dos palestrantes de uma semana de conscientização na sede da Construtora Tenda, em São Paulo. “Foi um fechamento com chave de ouro para o evento. O Aranha viveu situações profundas de racismo ao longo da vida e transformou esses episódios em motivo de luta e conscientização”, diz Cristina Caresia, diretora de Gente e Gestão. “Ele é capaz de gerar debate, reflexão e, ao mesmo tempo, se conectar às pessoas.”

O ramo em que a empresa atua, a construção civil, é emblemático para o combate ao racismo estrutural. Nos últimos anos, Caresia afirma que os indicadores estão evoluindo: hoje, a construtora possui 60% de colaboradores negros no País. O desafio está no aumento dos líderes; hoje são 31%.

Entre os exemplos que usa para ilustrar as desigualdades raciais na sociedade brasileira, Aranha pede que as pessoas reflitam sobre o destino que as pessoas dão a seus salários. “Para quantas pessoas negras você fez um pagamento hoje? No mercado? No banco? Não vale para o manobrista ou esmola”, diz. “Por outro lado, o que acontece quando os negros recebem seu salário?”

Na opinião do escritor, essa disparidade mostra o desequilíbrio da circulação da riqueza e que mostra como o racismo estrutural permeia também as relações econômicas.

Troféu mais importante não veio do futebol

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Marcelo Carvalho, diretor executivo no Observatório da Discriminação Racial no Futebol, lembra que Aranha denunciava o racismo estrutural antes do episódio de 2014. “Infelizmente foi preciso que acontecesse aquele episódio para que as pessoas passassem a ouvi-lo. Ele foi um dos poucos que não silenciou. Pagou um preço por isso”, diz. “Aquele fato foi crucial para a imprensa ouvir mais as pessoas negras”, avalia.

Aranha acredita que não conseguiu continuar atuando por causa de sua postura firme. O Grêmio acabou excluído daquela competição, os agressores foram punidos, mas ele também ficou marcado. Ele encerrou a carreira quatro depois, aos 38 anos. “Conheço o torcedor e parte da imprensa. Se eu perdesse um jogo ou falhasse, eles diriam que estava sem foco e mais preocupado em falar sobre coisas alheias ao futebol. Eu fazia e nunca divulgava”, conta.

Entre essas homenagens quase secretas está o 20º Prêmio Direitos Humanos, oferecido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Em 2014, Aranha recebeu a homenagem no Palácio do Itamaraty, em Brasília, das mãos da então presidente Dilma Rousseff.

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“É o troféu mais importante que tenho na minha casa. Exatamente por não estar ligado ao futebol e sim a uma luta que impacta na vida das pessoas”.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol

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