Quem escuta Bianca Pagliarin nas palestras motivacionais na igreja evangélica fundada pelo pai, o pastor Juanribe Pagliarin, encontra uma mulher de voz firme e discurso eloquente. Nas chamadas “Quintas da Visão”, a ex-modelo, coach e comunicadora se propõe a ajudar sua plateia a olhar para dentro e a encontrar valor no que vê.
Essa é uma lição que ela mesma custou a aprender. Hoje com 41 anos, Bianca conviveu por muito tempo com o que define como um “buraco”, cavado pelo sentimento de rejeição, que consumiu a paz da família, a carreira de modelo, o dinheiro e a saúde de uma jovem que, dos 18 aos 21 anos, viveu para o consumo de crack.
Hoje, ela destina parte de sua vida para falar sobre a experiência com a dependência química onde a convidam e, principalmente, como voluntária em clínicas de reabilitação para mulheres. A comunicadora, que passou por quatro internações compulsórias, considera a tarefa um “trabalho de formiguinha”: “Existe uma ideia de que basta a pessoa ter força de vontade. Precisa ter, mas existem grupos de apoio, existe internação para desintoxicação e ela precisa saber que um caminho de recuperação é possível”, afirma.
Bianca teve a infância marcada pelo bullying e por observações de adultos acerca de seu sobrepeso: ouvia que era “bonita de rosto”. Crescer insegura e convencida de que não tinha valor fez com que, desde muito cedo, ela tentasse preencher o vazio que sentia com o que define como um “perfil compulsivo”. Quando criança, a compulsão era a comida, e ela conta que chegava a comer, chorando de culpa, xícaras cheias de leite condensado. Aos 13 anos, com dietas tiradas de revistas femininas, emagreceu mais de 20 quilos para iniciar os testes para modelo.
“Eu comecei com uma dieta de 1.200 calorias. Tinha um caderno em que eu anotava tudo que comia e contava, e isso virou uma obsessão. Um dia, me propus a fazer 900 e vi que conseguia. Fui diminuindo, cheguei a consumir 300 calorias por dia”, conta. A preocupação com a contagem diminuiu quando ela começou a se enturmar com colegas na agência de modelos, com quem experimentou os primeiros cigarros, drinques e, aos 16 anos, drogas sintéticas como cocaína e anfetaminas.
Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2021 o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu cerca de 400 mil pessoas com transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de drogas, aumento de 11% em relação a 2020. Já de 2019 para 2020, a alta foi de 54%. Bianca diz perceber que o problema tem crescido e relata que, na igreja e no trabalho como comunicadora, é procurada para ouvir relatos e orientar pessoas. Um dos objetivos da abordagem que adota é falar sobre drogas sem o estigma que, muitas vezes, acompanha o assunto.

Nascimento do filho
“Quando eu já estava há mais de 18 anos limpa, percebi que eu nunca falava sobre isso com ninguém. Não tanto por vergonha ou medo, mas por conta de como a dependência é vista como uma falha de caráter enquanto, na verdade, é uma doença”, afirma.
Em sua seção F, o CID-10 (Código Internacional de Doenças) da Organização Mundial da Saúde (OMS) não menciona drogadição, mas lista transtornos mentais e comportamentais provocados pelo uso de diferentes tipos de drogas, como crack, maconha, cocaína, opiáceos, cafeína e outras substâncias psicoativas.
A vontade de quebrar o silêncio veio com o nascimento de seu filho, João Mateus, hoje com 5 anos. Ao pensar no que falaria ao menino no dia em que ele perguntasse sobre drogas, a ex-modelo chegou à conclusão que queria transformar um episódio doloroso em algo bonito. “Eu ia dizer o quê? Que droga é ruim, que eu nunca usei e que ele também nunca vai usar?”
Compartilhar sua história implicou em resgatar a memória de momentos difíceis. Ela recorda que, desde o início, o uso de drogas não ocorreu de forma recreativa ou social, mas compulsivo como o leite condensado ou a contagem de calorias. Com o vício em crack, se foram as oportunidades como modelo e o dinheiro ganho com os trabalhos e vieram as dívidas, mentiras e o roubo de objetos da família.
Em seus períodos mais complicados, chegou a passar temporadas fora de casa, em hotéis nas redondezas da antiga Cracolândia, na região central de São Paulo. Quando acabava o dinheiro, ligava para a mãe, Arlete Engel Pagliarin. “Ela acabava contando onde estava, pedia para eu socorrer com o dinheiro. Eu ia atrás, às vezes ela vinha comigo, outras vezes foi feito o resgate e ela foi levada para a clínica”, conta Arlete.
“Um dia de cada vez, ela foi conseguindo”
Em sua quarta internação compulsória, uma chave virou na cabeça da jovem de 21 anos. Deparou-se, relata, com a realidade de que não tinha mais nada a perder além da própria vida. Como uma das atividades propostas pela clínica, Bianca escreveu uma carta em que assumia a responsabilidade por suas escolhas. Em outra ocasião, um profissional da instituição leu trechos da entrevista que realizou com Arlete sobre a situação da filha. Pela primeira vez, o choque com o que sua vida havia virado foi maior do que o apego à sensação trazida pelo crack: “Perceber que minha própria mãe não tinha mais esperanças foi um impacto muito grande”.
Dali, seguiu-se um longo processo. Bianca frequentou reuniões da Narcóticos Anônimos (NA), começou um acompanhamento psicológico que continua até hoje e distanciou-se das companhias da época. “A gente tinha medo que não seria a última vez, mas um dia de cada vez ela foi conseguindo, voltou a trabalhar e hoje abraçou a missão de ajudar outras famílias nessa condição”, lembra sua mãe.
Na experiência da ex-modelo, alguns fatores fazem a diferença para um processo de recuperação efetivo: “É preciso que a clínica tenha uma compreensão profunda de como funciona o mecanismo que leva para a boca de fumo. Não adianta enfiar a Bíblia goela abaixo, sem trabalho de conscientização, sem programa de 12 passos (desenvolvido pela NA e pela Alcoólicos Anônimos), ou deixar a pessoa lá por nove meses carpindo terreno”, defende.
“Eu não tinha nenhuma esperança”
“Meu sonho de vida era poder acordar um dia sem ter aquela fissura, aquela vontade de ir buscar droga. Fazer um curso? Ter um filho? Eu não tinha nenhuma esperança”, relembra. Mas Bianca se formou em Comunicação Social, se casou, teve João Mateus, fez pós-graduação em Neurociência e Comportamento, cursos de coaching, passou a atuar na igreja. A família também se reestruturou e, nesse processo, Arlete Pagliarin conta que os grupos de apoio para familiares que frequentou foram fundamentais.
Hoje, a comunicadora traz em suas palestras palavras sobre meditação, a importância dos exercícios físicos, saúde mental, autoaceitação e autoamor. A cura, afirma, acontece quando é possível olhar para o passado e amar quem se era: “Não tenho orgulho de ter feito as coisas como eu fiz, mas foi essa pessoa que me fez ser a que eu sou hoje, que está sempre buscando ajudar os outros”, conclui.