Quem mora nas cidades do interior do Paraná, especialmente aquelas com agroindústria, percebeu a intensa imigração de haitianos a partir de 2010, quando o país caribenho foi devastado por um terremoto que matou quase 200 mil pessoas. A ida dos imigrantes para essas regiões tem forte vínculo com a dinâmica de trabalho e a busca pela sobrevivência.
De 2010 a 2019, conforme dados do Portal da Imigração, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Brasil emitiu 109.278 carteiras de trabalho para haitianos. Na quarta-feira, 26, sete trabalhadores haitianos morreram após uma série de explosões em um silo da cooperativa C.Vale, em Palotina, no oeste do Paraná. Um oitavo haitiano está desaparecido e segue sendo buscado pelos bombeiros. A empresa operava em condições regulares, segundo a corporação.
A falta de mão de obra para ocupações de trabalho pesado levou empregadores paranaenses a buscarem haitianos enviando ônibus para o Norte do País, afirma o professor de Geografia do Instituto Federal do Paraná (IFPR) Liniker Alan Gabriel Nunes, que estudou em seu doutorado a migração e o trabalho dos haitianos no Paraná entre 2010 e 2022.
“Isso aconteceu em Cascavel para construir o prédio de uma universidade, por exemplo. Esse fluxo se consolidou principalmente no interior. O trabalho em frigoríficos e na agroindústria também foi muito atrativo para os imigrantes. Por conta da rotatividade e das condições dessas ocupações, os brasileiros não queriam trabalhar nesses locais”, afirma o pesquisador.
Estimativa é de cerca de mais de 20 mil haitianos no Paraná
“Até meados de 2016 foi bem forte esse movimento. Pelas estimativas, o Paraná tem mais de 20 mil haitianos, é um dos Estados com maior presença”, afirma Nunes. “O Paraná é o maior exportador de frango do Brasil e se destaca em outras produções. Essas cadeias tendem a atrair trabalhadores imigrantes”, avalia.
Em geral, de acordo com o pesquisador, as famílias haitianas se instalaram nas periferias das cidades, algumas até em ocupações, ou em locais que facilitam a mobilidade até o trabalho.
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Jéssica Garcia, chefe de gabinete da Secretaria de Assistência Social de Palotina, conta que na cidade a C.Vale é quem mais oferta vagas de trabalho para imigrantes. “Mas a cultura aqui é bastante diferente, o custo de vida (para a realidade dos imigrantes) é bastante alto, e os aluguéis também. Além disso, se deparam com exigências de escolaridade. Isso faz com que a maioria se torne público dos serviços e programas de assistência social”, diz.
Dados do governo federal mostram que o País registrou a entrada de 176 mil haitianos de 2010 a 2023. O ano recorde foi 2019, com 27,7 mil registros. Em 2022, o patamar ficou em 4,3 mil, e neste ano chegou a 2,4 mil. No Paraná, na última década foram 30,4 mil entradas de haitianos, com pico em 2019, com 4,9 mil.
O governo aponta 1.134 pedidos de reconhecimento da condição de refugiado no Paraná entre 2016 e 2023. Em 2018, foram 641 solicitações, a maior quantidade anual do período. Neste ano, quatro já tinham entrado com o pedido.
‘Buscamos uma alternativa para sobreviver’
Segundo Edna Nunes, criadora da ONG Embaixada Solidária, que ajuda migrantes recém-chegados com assistência jurídica, médica e capacitação profissional, há cerca de 12 mil migrantes só no Oeste do Paraná. “Dos migrantes e refugiados, 70% trabalham em cooperativas agrícolas. A maioria deles são haitianos, seguidos por venezuelanos e africanos”, afirma. A ONG fica em Toledo, a 50 km de Palotina.
Haitiano que desde 2018 vive no Brasil, Benjamin Lozin também escolheu o Oeste do Paraná para recomeçar a vida, em Cascavel. “Todos vêm com objetivo de vida melhor, crescer, mas principalmente para haitianos, diferentemente dos venezuelanos, que conseguem empregos em outros lugares, a barreira linguística é a principal dificuldade”, relata Benjamin, de 26 anos e repositor de frios em um supermercado.
O haitiano Emmanuel Predestin, de 36 anos, é exceção. Ele, que já foi secretário de Juventude e Cidadania em Maringá (PR), chegou ao Brasil em 2010 com o ensino médio completo. No Paraná, estudou Agronomia e hoje é doutor na área. Fluente em cinco idiomas, há alguns anos ele ajuda imigrantes, não apenas haitianos, a conseguirem se regularizar no País.
“Buscamos uma alternativa para sobreviver. O Brasil é um dos países que mais oferecem ajuda para nós. Tive o privilégio de conseguir bolsa de estudos. Mas, muitas vezes, os imigrantes trabalham em situações complicadas, Infelizmente há dificuldades com o idioma e para dominar equipamentos”, conta.
“Eu conhecia a grande maioria das vítimas”, diz ele. Sempre fui um meio entre a embaixada e os haitianos. Vou para prestar homenagens e ver como podemos ajudar as famílias com a logística”, acrescenta.
Vídeo mostra buscas no local nesta sexta-feira
Acidentes de trabalho
Segundo ele, uma parte dessas atividades envolvem situações de risco. O Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, aponta o Paraná como o 4º Estado no ranking nacional de acidentes de trabalho. Foram 5.486 ocorrências com óbitos nos últimos 20 anos.
Hoje, o Ministério Público do Trabalho do Paraná tem ao menos 470 processos em andamento por irregularidades de empresas na área de segurança. O Corpo de Bombeiros informou que “a C.Vale estava em conformidade com as normas de segurança”.
“(Em determinadas atividades da indústria e agropecuária) as condições de trabalho são complicadíssimas. Incidentes em escala menor do que o de Palotina aconteceram algumas vezes”, afirma Nunes.
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