Facção da Bahia se alia ao PCC, espalha terror e mira nova rota internacional do tráfico

Relatório do Ministério da Justiça vê risco de grupo ter alcance nacional. Guerra de criminosos rivais agrava crise de segurança; Estado diz investir em inteligência e contratar mais policiais

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Foto do author Paula Ferreira
Por Fernanda Santana e Paula Ferreira
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A facção Bonde do Maluco (BDM) nasceu em 2015 aos moldes de outros grupos criminosos brasileiros: dentro de uma cadeia, o Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador. Hoje, é citada em documentos oficiais como uma das maiores e mais perigosas do País, com participação no tráfico internacional de drogas.

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O BDM, fundado por um assaltante de banco morto em 2019, cresceu na guinada da conquista de territórios e aliados no abastecimento de drogas e armas. O principal deles é o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, para onde tem havido um fluxo de criminosos fugitivos.

Em associação, as facções intensificam a atuação com objetivo de expandir os negócios — inclusive fora do Brasil. O Porto de Salvador é visto como alternativa aos terminais de Santos e do Rio de Janeiro, já muito visados por operações policiais, para o tráfico internacional.

Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador, é berço da facção Bonde do Maluco Foto: MP-BA/Divulgação

O Bonde do Maluco é uma das 14 organizações criminosas no sistema carcerário baiano - o segundo Estado com mais grupos desse tipo, segundo relatório do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. No total, como mostrou o Estadão, a pasta mapeou 72 facções nos presídios do País.

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A guerra entre gangues rivais e as reações letais da polícia estão por trás da escalada de violência na Bahia nos últimos meses. A crise pressionou a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a lançar um plano de emergência em outubro, com envio de recursos e agentes federais.

Desde 2016, quando a relação entre PCC e Bonde do Maluco se estreitou, a apreensão de cocaína no porto soteropolitano saiu de 810 quilos para 8 toneladas em 2020, calcula a Polícia Federal (PF). Em Santos, ultrapassa as 20 toneladas.

Três anos depois, com o início das investigações da Operação Descontaminação, a PF identificou que o PCC cooptava baianos para enviar drogas ilegalmente à Europa. Em setembro de 2022, três funcionários de uma empresa que atuava no Porto de Salvador foram presos ao tentar remeter 165 quilos de cocaína em contêineres.

A Companhia Docas do Estado da Bahia, que administra o terminal, afirmou, em nota, que monitora constantemente as embarcações e dá suporte às operações. Sobre os funcionários presos, não se pronunciou.

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Segundo Diego Gordilho, delegado da PF, a facção paulista sempre buscou alternativa para a remessa internacional de drogas. “Em especial a cocaína, que atinge um preço muito alto lá fora. As cidades portuárias tem grande importância nesse cenário de exportações ilegais, em cascos de embarcações e containers”, afirma.

Relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de 2022, aponta que organizações criminosas no Brasil têm buscado portos menores no Nordeste e no Sul do País para diversificar as vias de escoamento de suas cargas ilegais. O documento, que não cita quais terminais têm sido usadas, diz que essa tendência era observada antes da covid-19, mas se intensificou durante a pandemia.

Na Bahia, o Bonde do Maluco foi o nome ideal encontrado pelo PCC. Afinal, eram bandidos que dominavam a maior parte dos pontos estratégicos de tráfico do Estado, principalmente entre Salvador, Recôncavo Baiano e o norte.

Apesar do cenário pulverizado, com 14 facções nas cadeias, o BDM é dominante. Segundo o mapeamento feito pelo Ministério da Justiça, abriga pelo menos metade dos detentos da Bahia que pertencem a alguma organização criminosa.

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Ainda conforme o documento, o Bonde “tende a se tornar nacional em função de sua aliança com o PCC”. No sistema carcerário, já está presente em outros Estados, como Mato Grosso do Sul e Piauí.

Aglutinação e terror

O BDM ganhou força com base em sua capacidade de aglutinação de pequenas facções e a expressividade do terror. Como forma de provar superioridade e exaltar sua atuação, os membros do Bonde passaram a divulgar em redes sociais, desde o surgimento, imagens de criminosos com fuzis nas mãos e homicídios cometidos com torturas.

“Como qualquer outra facção, o BDM opera pela lógica da intimidação, da captação e da eliminação dos rivais”, afirma Jorge Ferreira Melo, coronel da reserva da Polícia Militar da Bahia, que hoje é professor de Direito e pesquisa segurança pública.

Em maio do ano passado, a PF descobriu, no âmbito de outra operação - a Terra Livre -, que o BDM fez da Ilha de Maré, na Baía de Todos-os-Santos, uma espécie de bunker.

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Lá, os criminosos da facção armazenavam drogas e armas que, depois, seriam transportadas de barco, o único transporte possível na região, para outras localidades. Do outro lado da baía que cerca a Ilha de Maré, considerada bairro de Salvador, estão os portos da capital baiana e de Aratu.

Para o coronel, Zé de Lessa, criador do BDM, “sempre teve visão empresarial do negócio ilegal do tráfico de drogas e viu na aliança com o PCC um acordo de negócios, uma possibilidade de ampliar a atuação no tráfico internacional de drogas e consequentemente se fortalecer com maior acesso ao armamento e a matéria-prima do negócio”.

Diante da expansão da facção criada no Complexo da Mata Escura, o Comando Vermelho (CV), rival do PCC, decidiu fixar presença na capital baiana a partir de 2020. Até então, a facção agia como subsidiária de armas e drogas de outras organizações baianas, como o Comando da Paz, hoje quase extinto.

O relatório do Ministério da Justiça mostra a incidência nos presídios do País de 57 facções classificadas como “locais” no sistema. Na prática, segundo especialistas, elas se aliam a grupos maiores para dar fluxo aos negócios e se impor diante de outras facções, mas criam estruturas semelhantes, com profissionalização e regras próprias.

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Acirramento da violência traz crise sem precedentes

Desde o acirramento dessa disputa criminosa, a violência se intensificou na Bahia. O indicativo mais simbólico disso são os números de mortos em operações policiais de repressão ao tráfico: foram 1.689 no ano passado, segundo o Ministério da Justiça — 15% a mais em 2022. É o maior número do país.

A Secretaria de Segurança Pública da Bahia disse, em nota, apenas que as operações de combate às facções são prioridade, principalmente por meio da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado.

A proliferação de facções criminosas na Bahia traz riscos de motins e revoltas nos presídios, onde esses grupos normalmente se formam, alerta o delegado Gordilho, da PF.

Fora das celas, isso resulta em mais violência nas ruas. O mais recente epicentro da guerra entre o BDM e o CV, em Salvador, é o Pero Vaz. Bairro da periferia, ele está no miolo urbano espremido justamente entre duas rotas de escoamento: a BR-324 e a região do Comércio, onde está o Porto de Salvador.

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PCC e Bonde do Maluco querem usar Porto de Salvador como canal de escoamento de drogas para o exterior Foto: Emanuel/Adobe Stock

Desde o último domingo, 25, três pessoas foram baleadas durante troca de tiros e nove carros foram incendiados no bairro. “O crime organizado, sobretudo em relação ao tráfico de drogas, traz crimes conexos, como assassinatos, que impactam também a sociedade”, completa Gordilho.

No ano passado, por exemplo, o BDM costurou nova aliança: a facção carioca Terceiro Comando Puro (TCP), que tem como arquirrival o Comando Vermelho.

As desavenças ficam evidentes em pedido de prisão preventiva de dois membros do BDM feito pela PF, em 2022. Chefes da facção temiam possibilidade de lideranças paulistas negociarem drogas e armas na Bahia sem intermediação deles. Na época, BDM e PCC precisaram reafirmar o acordo de cooperação.

Um grupo de mensagens, chamado “Aliança entre BDM e PCC”, foi criado para alinhar ações. A parceria permite não só a transação de drogas e armas entre Salvador e São Paulo, mas a migração de bandidos entre os Estados, mostram documentos de investigação apresentados à Justiça e acessados pelo Estadão.

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Em um pedido de habeas corpus de dois traficantes do BDM, de 2018, consta que eles deixaram a Bahia e se refugiaram na capital paulista para despistar policiais.

Entre as ações destacadas pelo governo baiano, estão a contratação de cerca de 2,5 mil policiais e bombeiros, softwares de inteligência, armamentos, viaturas semiblindadas e cursos de capacitação. A pasta também diz investir em inteligência e afirma ter localizado 33 líderes de facções em 2023.

“O trabalho investigativo e de repressão qualificada resultou na apreensão recorde de 55 fuzis em 2023, na localização de 11 toneladas de drogas, na desarticulação de 18 laboratórios de cocaína, em 15.600 prisões e na apreensão de 5 mil armas de fogo”, diz.

A secretaria também destacou “o empenho dos policiais e bombeiros na promoção da paz” e a redução de 6% das mortes violentas no Estado.

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O Ministério Público Federal (MPF) afirmou que há dois procedimentos ativos relacionados ao Bonde do Maluco. O órgão disse, porém, que não pode, por sigilo, informar o conteúdo.

Procurados para comentar as investigações, Polícia Civil e Ministério Público da Bahia não falaram.

Criador de facção morreu na divisa com o Paraguai

O BDM foi criado para ampliar a área de atuação de outra facção baiana, a Caveira, e tirar o foco das investigações dessa organização criminosa, conforme relatório da Coordenação de Monitoramento e Avaliação do Sistema de Administração Penitenciária da Bahia (Seap) acessado pela reportagem.

Um racha dentro do grupo, no entanto, fez de antigos aliados, rivais. José Francisco Lumes, o Zé de Lessa, assaltante de banco, se consolidou como liderança do BDM.

Na última vez em que saiu da cadeia para cumprir prisão domiciliar, Zé de Lessa se mudou para Coronel Sapucaia, Mato Grosso do Sul. A cidade, onde o criminoso morreu durante operação policial em dezembro de 2019, faz divisa com o Paraguai, um dos principais abastecedores de drogas na América Latina.

“O Paraguai é de muita importância no combate ao crime organizado na América do Sul, pela questão da sua fronteira territorial, que é seca e molhada, com o Brasil”, afirma Gordilho. “Muitas lideranças de organizações criminosas buscam o Paraguai como refúgio para gerenciar atividades ilegais”, diz o delegado da Polícia Federal.

E os negócios ilícitos da facção são diversos. Quatro envolvidos com o BDM foram presos por um esquema de extorsão virtual no Distrito Federal. A investigação apontou que a quadrilha anunciava a venda de pacotes de conteúdo sexual por meio de um aplicativo de mensagens para depois extorquir as vítimas.

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