Como a facção ‘Povo de Israel’ recruta exército nas prisões do Rio e usa tática do PCC

Grupo domina 42% dos detentos do Estado; influência do Comando Vermelho cai nas cadeias, mas cresce fora delas. Governo destaca combate a celulares na prisão e ajuda com investigações

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Foto do author José Maria Tomazela
Atualização:

Investigações da polícia do Rio de Janeiro mostram que a facção criminosa Povo de Israel expande seu domínio em presídios fluminenses e tenta se aliar à facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). O PCC é inimigo histórico do Comando Vermelho (CV), principal organização criminosa do Rio.

Relatório da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) revela indícios da aproximação entre a Povo de Israel, que já domina 42% da população carcerária do Rio, e o PCC. O governo fluminense tem destacado a contribuição com as autoridades para investigar a atuação do crime organizado e também as estratégias para coibir a circulação de celulares em presídios (leia mais abaixo).

O Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, é um dos presídios onde há atuação da facção Povo de Israel Foto: Pedro Kirilos/Estadão

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Segundo a Seap, a Povo de Israel está em 13 presídios fluminenses, chamados por eles de “aldeias”, e contaria com apoio do PCC para conquistar territórios fora das cadeias. Dos 43 mil detentos da rede fluminense, nos regimes fechado e semiaberto, 18 mil estão vinculados ao Povo de Israel, segundo a pasta.

Conforme as investigações, o grupo movimentou cerca de R$ 70 milhões ao longo de dois anos – média de R$ 2,9 milhões por mês -, a partir de recursos obtidos com tráfico de drogas e extorsão praticada por meio de falsos sequestros. Cooptou ainda funcionários e agentes penais, diz a apuração.

A apuração indicou que as operações da facção Povo de Israel são muito similares às usadas pelo PCC quando a facção paulista se expandiu nos presídios, em décadas passadas. O grupo organiza a entrada de drogas, ficando com parte do entorpecente ou do pagamento feito por ele. Também atua fortemente no golpe do falso sequestro, operando a entrada de celulares nas unidades.

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Segundo a investigação, os ganhos são divididos entre as partes como fazia o PCC: 30% da receita com os golpes vão para o ‘empresário’ (dono do celular), 30% para o ‘ladrão’ (operador do golpe) e 30% para o ‘laranja’, que atua na lavagem do dinheiro. Os outros 10% vão para uma espécie de caixa único da facção. Essa forma de atuação ainda não existia nos presídios do Rio, segundo a polícia.

Operação 13 aldeias

No último dia 22, policiais civis da Delegacia Antissequestro (DAS), com apoio da Subsecretaria de Inteligência e Corregedoria da Seap realizaram a 1ª fase da Operação 13 Aldeias na tentativa de barrar a expansão da Povo de Israel.

A investigação, iniciada há dez meses, identificou um esquema de lavagem de capitais por meio de laranjas e empresas fantasmas que abastecem a organização criminosa com celulares e drogas.

Nesta 1ª fase, foram cumpridos 44 mandados de busca e apreensão e realizado o bloqueio de contas correntes e ativos financeiros de 84 investigados, bem como o afastamento da função pública de cinco policiais penais, suspeitos de envolvimento com os crimes.

A reportagem conseguiu contato com a defesa de dois acusados, que não se manifestou. A defesa dos demais agentes não foi localizada.

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As diligências foram realizadas em Copacabana e Irajá, na capital, e nos municípios de São Gonçalo, Maricá, Rio das Ostras, Búzios e São João da Barra. Foram descobertas ramificações do esquema no Espírito Santo e em São Paulo.

A Polícia Civil do RJ iniciou nesta terça-feira (22) a Operação 13 Aldeias, contra uma quadrilha que, de dentro dos presídios, faz centenas de vítimas todos os dias com o golpe do falso sequestro. Foto: Reprodução/ TV Globo

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O secretário de Segurança Pública do Rio, Victor dos Santos, apontou semelhanças entre o modus operandi do PCC e a organização Povo de Israel. “Uma facção nascida dentro da cadeia, lembrando que o PCC começou assim, muitos anos atrás, mas a segurança pública está atenta e as secretarias, agindo de forma coordenada e integrada, mostram um resultado como esse”, disse após a operação.

Para Guaracy Mingardi, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a queda na influência do Comando Vermelho no interior dos presídios abriu espaço para o surgimento de outras organizações. “O controle do território por uma organização começa pelo controle do presídio, como foi com o PCC. Quem vai preso sabe que precisa ter amigos lá, e eles catequizam quem chega”, diz.

“O Comando Vermelho pode estar em decadência, assim como o PCC uma hora pode entrar em decadência em São Paulo. É difícil saber se o PCC já está no Rio. Ele já tentou entrar uma vez através da facção Amigos dos Amigos (ADA) e não deu certo”, acrescenta.

‘Batismo’ pelo PCC na prisão

O elo entre a Povo de Israel e o PCC, segundo a investigação, seria Avelino Gonçalves Lima, o Alvim ou Vilão, apontado como principal chefe da facção do Rio. Quando Alvim estava detido na unidade Inspetor Luís Fernandes Bandeira Duarte, teria autorizado o “batismo” de presos pelo PCC. “Batismo” é o ritual de ingresso na facção. O Estadão não obteve retorno dos advogados que defendem Alvim.

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Alvim foi condenado a 46 anos de prisão por homicídio, roubo e estupro. Depois de não retornar de saidinha temporária, em 2007, foi recapturado dois anos depois e transferido para uma penitenciária federal.

Em agosto do ano passado, ele retornou ao Rio para o Complexo de Gericinó. A Seap acredita que Alvim comanda o comércio de drogas no interior dos presídios – desde 2020, as apreensões têm sido recorrentes. A suspeita é de que o PCC esteja fornecendo drogas para o chefe da facção Povo de Israel.

Por que a facção tem esse nome?

Segundo a Polícia Civil do Rio, a facção surgiu em 2004 no presídio Ary Franco, em Água Santa, no norte carioca. Os presos neutros (não faccionados) que se sentiam ameaçados pelas facções e os detentos do “seguro”, acusados de abuso sexual de crianças ou estupro, pediram transferência para outra unidade.

Como não foram atendidos, iniciaram rebelião violenta, que deixou oito internos mortos. Havia uma Bíblia no local e um dos amotinados teria aberto o livro sagrado aleatoriamente em um versículo dirigido ao “povo de Israel”.

A partir disso, o grupo de presos adotou o nome e passou a recrutar detentos não vinculados às grandes facções do Rio, como CV, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos.

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As investigações da Polícia Civil apontam que o Povo de Israel tem um código de conduta que não discrimina presos por estupro e abuso sexual de crianças, como as outras facções, embora condene delatores (dedos-duros ou “x-9″).

Onde a facção atua?

A facção tem atuação mais destacada no Complexo de Gericinó, em Bangu, onde domina três unidades: Nelson Hungria, José Antônio Costa Barros e Plácido de Sá Carvalho. E atua fortemente nas unidades Juíza Patrícia Acioli, em São Gonçalo, no presídio Romeiro Neto, em Magé, e no presídio Milton Dias Moreira, em Japeri.

Celulares apreendidos na cadeia na Operação 13 Aldeias, contra o Povo de Israel. Foto: Divulgação/Polícia Civil RJ

Ainda conforme o relatório da Seap, está presente ainda na Cotrim Neto (Japeri), Crispim Ventino (Benfica), Evaristo de Moraes (São Cristóvão), Luís César Fernandes Bandeira Duarte (Resende), Milton Dias Moreira (Japeri), Tiago Teles de Castro Domingues (São Gonçalo) e Hélio Gomes (Magé).

Na quarta-feira, 23, a Justiça do Rio afastou dos cargos os cinco policiais penais acusados de favorecer a atuação da facção Povo de Israel dentro dos presídios.

Governo mira celulares nas cadeias

Em nota, a Seap diz que tem intensificado o combate a atividades criminosas no sistema prisional, impedindo a entrada ou removendo das unidades celulares e drogas. Nos últimos dois anos, diz ter feito monitoramento minucioso em 13 presídios de detentos de perfil neutro, onde atua a Povo de Israel, “o que resultou num relatório com um raio-x inédito das atividades deste grupo”.

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Segundo a pasta, o relatório foi enviado ao Ministério Público e à Polícia Civil, possibilitando a operação. “Entre os policiais penais investigados pela DAS, dois deles estão respondendo a processos administrativos da Corregedoria da Seap, sendo que um deles já está preso”, disse.

Segundo a Seap, em 2023, foi iniciado processo licitatório, que se encontra em fase final, para adquirir bloqueadores de celulares para o Complexo de Gericinó. A tecnologia permite o bloqueio apenas do sinal do presídio.

Em dois anos, foram apreendidos 6.921 celulares nas 13 unidades de atuação da Povo de Israel, segundo a pasta. Entre 2022 e este ano, foram detidos 50 policiais penais por atividades ilícitas, resultando em 13 demissões.

Domínio do Comando Vermelho cresce fora dos presídios, aponta estudo

Embora o controle do CV nos presídios possa estar caindo, o Mapa dos Grupos Armados divulgado em setembro último mostra que o ano de 2023 foi marcado pelo avanço da facção no domínio territorial na região metropolitana do Rio.

As milícias registraram redução de 19,3% no domínio territorial; o Terceiro Comando Puro (TCP) teve perda de 13% e a facção Amigos dos Amigos, 16,7%.

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Já o Comando Vermelho avançou 8,4% seu domínio entre os anos de 2022 e 2023. O Mapa é uma parceria entre o Instituto Fogo Cruzado e o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).

Com isso, as milícias que, em 2021 e 2022 eram o grupo armado com maior domínio territorial, foram ultrapassadas pelo CV que, em 2023, concentrou 51,9% dos territórios controlados por grupos armados na região metropolitana do Rio. O estudo não detectou áreas expressivas dominadas pela facção Povo de Israel.

Ao todo, de 2,5 mil km2 de área urbana habitada na região, 18,2% esteve sob o domínio de algum grupo armado em 2023. Em 2008, as áreas dominadas representavam 8,8%.

“Testemunhamos nos últimos anos episódios emblemáticos de conflitos entre grupos armados pelo controle territorial e, agora, vemos como isso tudo faz parte da dinâmica geral do controle de territórios e populações”, diz Daniel Hirata, coordenador do Geni-UFF.

“A expansão do controle territorial se faz de forma muito mais frequente em áreas não controladas anteriormente, mas não é possível ignorar o conflito aberto no Rio de Janeiro”, afirma, no estudo.

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