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Com frio recorde, famílias desalojadas no RS dormem na beira da estrada: ‘Medo? Só de Deus’

Há pelo menos nove dias, moradores de Eldorado do Sul e da Ilha das Flores estão na BR-290

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Foto do author Paula Ferreira

ENVIADA ESPECIAL A ELDORADO DO SUL - No dia em que o Rio Grande do Sul teve temperaturas mínimas (10ºC em Porto Alegre, menor do ano), famílias gaúchas desalojadas pela chuva recebiam um vento frio no rosto a cada vez que um caminhão passava pela rodovia que liga Porto Alegre à cidade de Eldorado do Sul, devastada pelas águas do Guaíba. Há pelo menos nove dias, moradores da cidade e da Ilha das Flores, na região metropolitana, dormem na beira da estrada e resistem em deixar o solo onde cresceram.

“Daqui eu não saio enquanto Deus não me levar. Medo? Só de Deus”, resume Sérgio Moacir Rodrigues, de 48 anos, que acampa às margens da enchente, no acostamento da rodovia, acompanhado de dois amigos, seus cachorros e um porco.

Sérgio Rodrigues acampa no acostamento da rodovia acompanhado de seus cachorros e um porco. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

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Sérgio foi resgatado de sua casa em Eldorado do Sul e deixado em um abrigo em Guaíba, cidade a cerca de 30 quilômetros de sua moradia. Apesar da distância, do bloqueio de estradas e das dificuldades de deslocamento, ele deixou o abrigo e foi a pé até chegar ao local onde montou sua barraca improvisada. Na redondeza de onde tem dormido, Sérgio vigia os carros estacionados (alguns de amigos), ajuda a transportar vacas conforme a água permite e vigia a entrada do que um dia foi uma cidade.

“Estou tipo um porteiro mesmo”, brinca.

O Rio Grande do Sul vive a maior tragédia climática de sua história, atingido por fortes temporais desde o último dia 29. Segundo a Defesa Civil estadual, 446 dos 497 municípios gaúchos foram impactados, e mais de 600 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas casas. Em consequência das chuvas, 149 pessoas morreram e 112 seguem desaparecidas.

No fim de tarde desta terça-feira, 14, Sérgio estava molhado no frio recorde do ano quando conversou com a reportagem do Estadão. Ele tinha acabado de ir até sua antiga casa verificar a situação, quando o barco virou enquanto seu amigo salvava uma cachorra.

“Minha casa sumiu. Não temos nada, só a roupa do corpo”, lamentou.

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Eldorado do Sul ficou 100% inundada pela enchente, um mar de telhados flutuantes. A água barrenta da inundação tornou a cidade uma grande mancha, sem a identidade dos formatos e pinturas das casas. Ao descer pela rodovia na qual só passam poucos carros de ajuda, a primeira visão é desoladora, uma prova inconteste de que algo errado está acontecendo com o planeta.

“Brincar com a natureza não tem como. O que nós fizemos, hoje está vindo em dobro. A natureza cobra”, opina Gilmar Tavares, que também está acampado na rodovia, mas no sentido oposto.

Na mesma barraca de Gilmar, Luis Amancio Machado, de 54 anos, tentava se aquecer tomando um chimarrão. Nos primeiros dias da estrada como casa, tomava banho nas águas da enchente, agora, depois que parte do socorro chegou, usa as águas engarrafadas para se banhar.

Apesar da dificuldade, Luis argumenta que ficar perto de casa e com a privacidade de dividir seu espaço ao relento apenas com conhecidos é o que o faz querer ficar na beira da pista. “Nascemos ribeirinhos, mas não somos miseráveis. Todo mundo trabalha e todo mundo tem profissão. Só que o que acontece agora é que nós perdemos tudo. É um recomeço de tudo. O óbvio era nós irmos para o abrigo, mas um pouco da nossa dignidade, que trabalhamos e somos velhos, temos aqui”, afirmou.


Luis Amancio busca reconstrução após mais uma enchente: 'Nascemos ribeirinhos, mas não somos miseráveis.'  Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

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Em uma barraca na altura da Ilha das Flores, Mariana de Freitas descansava. Aos 23 anos, essa não foi a primeira vez que sofreu com a enchente, mas nunca nessa magnitude. De sua casa alugada na ilha, ia salvar apenas a geladeira, até que precisou usá-la como uma espécie de barco improvisado para não morrer afogada.

Foi para um abrigo, saiu, voltou para a casa alagada depois de alguns dias, a água recomeçou a subir. Decidiu passar a noite em uma parada de ônibus na rodovia, até que montou acampamento junto com outros moradores. Depois de se instalar no asfalto, resolveu verificar a situação da casa que construía em Eldorado antes de tudo virar água. Recém-casados, ela e o marido tentaram ir até o local. Quando chegaram, o que foi um sonho de lar sem ter sido de fato, tinha vindo abaixo.

Mariana usou a geladeira como uma espécie de barco improvisado para não morrer afogada. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

“A gente foi caminhando devargarzinho para olhar a casa, chegamos ali e a casa caiu. É um buraco. Um patio vazio”, conta.

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Agora, é mais uma moradora da BR-290.

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