ENVIADA ESPECIAL A ROCA SALES (RS) - Das fotografias de família, Ercy e Ergon Baller só conseguiram salvar três: duas do filho e uma do casamento. Ergon chegou a descer no barranco para recuperá-las, mas as outras lembranças foram apagadas pela água, incluindo as únicas fotos dos outros dois filhos falecidos quando ainda eram bebês.
“Fiz 67 anos no dia 10 de maio e nem me lembrei do meu aniversário, passou. Não me lembrei do Dia das Mães, não me lembrei de nada”, disse Ercy emocionada.
O casal Ercy e Ergon é uma das famílias que perdeu tudo pela segunda vez depois que o Rio Taquari invadiu a cidade de Roca Sales, no Rio Grande do Sul. As chuvas fizeram transbordar o leito do Rio que invadiu a cidade arrastando o que havia pela frente. Duas semanas depois do início da enchente, nesta quinta-feira, famílias tentavam organizar o que sobrou.
“Eu não consigo mais dormir. Eu não consigo mais ficar aqui. A gente fez a casa do jeito da gente, estava 100% e pensamos ‘agora vamos viver a vida’, e não temos mais nada”, afirmou ela, nos fundos da casa arrasada pela água.
A chegada ao Vale do Taquari não demora a revelar a destruição. Uma imensidão de lama e escombros ajuda a imaginar o que aconteceu ali há alguns dias, mas, como dizem os próprios moradores, a dimensão da força das águas, só vivendo para saber.
Impossível não desconfiar que a água tenha ido tão longe, inclusive em partes altas de Roca Sales, mas a marca nas paredes que sobraram não deixa restar qualquer dúvida. Vivendo na cidade que parece cada vez mais condenada pelas consequências das mudanças climáticas, o casal decidiu se mudar para viver com o filho em outra cidade. Na primeira grande enchente em setembro o casal subiu no telhado e foi puxado pelos moradores do prédio vizinho. Desta vez, conseguiram sair antes.
“Isso aí (o rio quando transborda) parece um mar. A água tinha tanta força que (destruiu tudo), isso aí era tudo casa de dois, três pisos”, lembra Ercy.
O casal de aposentados complementava a renda com os consertos de eletrodomésticos feitos por Ergon. Agora, com a oficina destruída e o plano de mudar de cidade em curso, os idosos se preocupam com o dinheiro curto em um momento no qual gastam quase R$ 2 mil com a medicação utilizada por Ergon, que descobriu um câncer após a enchente de setembro.
“(Só para pagar) Os remédios, luz e água, já foi a aposentadoria. Mas eu tenho esperança”, diz ele. “Parece que o governo vai ajudar o povo. Qualquer coisinha que vier, para mim, é uma vitória”, diz Ergon, que pretende continuar trabalhando:
“Agora que vou morar com meu filho, vou ter que fazer uma nova etapa: conquistar o freguês para que gostem de mim e tragam serviços”, explica.
Com pouco mais de 10 mil habitantes, Roca Sales acumula as tristes estatísticas de dez mortos e sete desaparecidos na enchente deste mês. O número se soma a outras 13 mortes registradas em setembro do ano passado. Nas ruas de Roca Sales, os semblantes são tristes, quase nenhum sorriso cruza o caminho.
Castigada pela necessidade, a população tenta qualquer tipo de ajuda. Durante a passagem da reportagem pelo município, mais de uma pessoa pediu pix para reconstrução de suas casas. Entre os moradores que conversaram com o Estadão, poucos sabiam dos benefícios anunciados pelo governo federal. Na quarta-feira, 15, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, entre outras medidas, um auxílio de R$ 5,1 mil em parcela única para famílias atingidas. O governo também liberou um saque de R$ 6.220 do FGTS para pessoas atingidas pelas chuvas.
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O artesão Nelson Noll é um dos moradores de Roca Sales que foi atingido mais de uma vez pela enchente e precisou se endividar para recomeçar a vida. No ano passado, sua casa foi destruída em setembro. Nelson reconstruiu a habitação, levantando o alicerce cerca de um metro de altura em relação ao nível da rua. Também reforçou as paredes com madeira. A estrutura da casa resistiu à enchente do início do mês, mas a água invadiu os cômodos da mesma maneira.
“Eu tinha umas economias, gastei o que eu tinha e fiz um empréstimo no banco para fazer essa reforma”, afirma Nelson Noll, de 76 anos.
As ruínas diante da janela de Nelson assustam. O que era um pequeno córrego se transformou em uma cratera com casas tombadas em cima. A lama torna a rua em frente escorregadia e a limpeza da casa uma tarefa difícil.
“É triste olhar isso aqui. A água arrancou tudo. Nem é bom abrir a janela. É tudo gente conhecida. Aquele telhado ali, o rapaz tinha uma casa, a água levou embora. Ele construiu outra e agora levou de novo”, relata.
Nelson atribui o desastre às mudanças climáticas e critica quem não acredita nas consequências da ação humana. “Faz anos que estou dizendo: esse desmatamento da Amazônia (vai dar problema). O problema nosso é o seguinte: só pensam em acumular fortuna. O cara tem R$ 1 milhão e quer R$ 2 milhões”, opina.
De acordo com dados do Ministério das Cidades, de 2023 até antes da tragédia, o Vale do Taquari havia sido beneficiado com 1.119 casas do Minha Casa, Minha Vida. No ano passado, após as enchentes no Vale, o governo criou uma modalidade do programa, o Minha Casa, Minha Vida “Calamidades”. O programa deve ser reforçado.
Na beira da curva do rio e diante de cheias recorrentes, não resta outra alternativa a Roca Sales a não ser se mudar. Segundo o prefeito, Amilton Fontana, pelo menos metade da cidade deverá ser reconstruída em outro endereço para proteger seus habitantes das cheias.
Filho do artesão, César Noll é um homem resignado depois de tantas tragédias. Prestes a completar 51 anos, não se assombra mais diante da repetição da catástrofe: “O psicológico está acostumado. A gente nem triste fica mais”, diz.
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