Eles deixaram São Paulo para chegar no semiárido na noite de Natal com 1.500 cestas básicas. Pouco depois estava criada a entidade batizada pela forma como os sertanejos se referiam a eles: Amigos do Bem, que hoje atende 300 povoados no Nordeste do Brasil com 10,6 mil voluntários.
Mas, quase 30 anos depois, a fome voltou a não dar trégua. Segundo dados do 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, da Rede Penssan e da Oxfam, lançado em junho, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País. O número é o pior desde o início da década de 1990.
A responsável por reunir o grupo de amigos foi Alcione Albanesi. Um dia, em uma creche, ela ouviu de uma mãe: “você acha que aqui tem pobreza, você nunca foi para o sertão”. Resolveu ir.
Da primeira viagem, guardou a indignação. “Mudou a minha forma de ver e de sentir o mundo. Eu encontrei pessoas em casas de barro, sem água, sem luz, sem alimentos, sem nenhum recurso, vivendo em povoados isolados e sem ter para quem pedir ajuda”, diz. “Encontrei uma miséria secular.”
Secular também eram ainda os chamados “homens gabiru”, sertanejos de baixa estatura, resultado da alimentação precária durante a infância, e as “viúvas de maridos vivos”, mulheres que criavam os filhos sozinhas no sertão enquanto seus maridos migravam para outras regiões do País.
Entre os voluntários do grupo estava o hoje aposentado Jesus Dias Souza. Não havia plano, nem locais de distribuição de alimentos definidos, conta. Montado em uma Kombi, acompanhava o caminhão de mantimentos em busca do que acreditavam ser os locais mais pobres da região. “A gente não sabia o que iria encontrar, mas nunca imaginei que fosse possível ver alguns lugares do Brasil daquela forma”, afirma.
Ano após ano, na década de 1990, a situação parecia não mudar. Economista e consultor, Tadeu Valencio fez sua primeira ida ao sertão na terceira viagem dos amigos. Atualmente vai até sete vezes por ano para a região. Nessas quase três décadas algumas imagens não saem de sua cabeça, como as “casas” improvisadas nas celas de uma cadeia desativada em Sousa, na Paraíba. “Entramos nesse prédio e não conseguimos ver ninguém, mas conforme íamos passando as pessoas começaram a sair de dentro das celas abandonadas, famílias inteiras com crianças”, diz.
Voluntária desde 1993, Reginalda dos Santos é coordenadora pedagógica e trabalha na formação de professores no Centro de Transformação da entidade e na área da educação infantil. De suas primeiras viagens, quando visitava lixões em busca de famílias carentes, até hoje, sua trajetória conta um pouco da história da evolução e estruturação do voluntariado. “Quando você vê as crianças que se transformaram, indo para a faculdade…não tem preço”, diz.
Do improviso movido a vontade, a entidade se estruturou, montou centros de operação no sertão, gerou emprego e renda nos locais e passou a atuar em outras áreas. Além da segurança alimentar, educação, trabalho, acesso a água, moradia e saúde completam o leque de atuação. Ainda assim, ou por isso mesmo, a atuação das ONGs levanta a questão da presença e obrigações do Estado.
Participação da sociedade
Para Camila Feldberg, gerente de Fomento do Itaú Social, o desenvolvimento do voluntariado deixa claro quais são os deveres do Estado ao não ocupar o espaço do poder público, mas reforçar sua atuação. “Contribuir com o desenvolvimento do País não é um dever só do Estado. É um dever, sim, do Estado mas que conta com a participação da sociedade. A ação voluntária é a oportunidade de qualquer pessoa exercer um papel cidadão de impacto no local em que atua”, afirma. “A gente sabe que os desafios sociais no País são grandes e a pandemia exacerbou as desigualdades.”
A resposta a essas diferenças, diz Camila, vem aumentando. “A ação voluntária vem crescendo. A última pesquisa Voluntariado no Brasil, do Datafolha e Ides, mostra esse crescimento desde 2011, passando de 11% para 34% da população”, afirma. “A mesma pesquisa mostra que, durante a pandemia, 43% dos que já eram voluntários passaram a fazer ainda mais trabalho voluntário.”
O peso da pandemia pode ser medido também no número de pessoas atendidas por Amigos do Bem. Antes do surgimento da covid-19 eram 75 mil. Depois, 150 mil. Com ela, veio uma crise econômica que expôs ainda mais a camada mais vulnerável da população, e com ela, a fome. “A fome e a miséria são uma realidade secular nas regiões em que atuamos. A população mais carente é sempre mais vulnerável e impactada pelas questões socioeconômicas”, diz Alcione.
“Decidimos atender localidades, povoados afastados dos grandes centros, onde os recursos são ainda mais escassos. Começamos entregando doações e ajuda para diminuir o sofrimento das pessoas e entendemos que a mudança só viria com o acompanhamento das famílias e a implantação de projetos recorrentes de desenvolvimento social, principalmente voltados para a educação e geração de renda”, completa.
Para o administrador de empresas, Alexandre Cesar Carrega, que estava na primeira viagem do grupo, em 1993, e se transformou em gerente de TI da ONG, abrir mão de seu tempo nunca foi um desafio para ser voluntário. “Voluntariado vai além de disponibilidade de tempo, acaba sendo parte da sua vida”, afirma. “Hoje, não conseguiria viver sem isso.”
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