‘Grupos masculinistas sempre existiram, mas agora acham que o mundo está contra os homens’

Após meses assistindo a vídeos de movimentos como red pill e MGTOW, Sara Stopazolli conta que alguns deles defendem inclusive que integrantes deixem de se relacionar com mulheres

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Foto: Acervo pessoal
Entrevista comSara StopazolliRoteirista e jornalista especializada em violência doméstica

Por três anos, a roteirista e jornalista Sara Stopazolli ficou mergulhada em grupos masculinistas que têm se espalhado pela internet. De diferentes tipos, eles ganharam o noticiário há algumas semanas depois que um vídeo do perfil Manual Red Pill Brasil viralizou. Nele, o coach Thiago Schutz fala de suposta manipulação de uma mulher que oferece cerveja a homem que bebe Campari – daí o apelido “Coach do Campari”. O podcast gerou sátiras nas redes sobre cursos de masculinidade, inclusive da humorista Lívia La Gatto, que registrou boletim de ocorrência contra Schutz ao receber mensagem falando em “processo ou bala”. Ele afirmou que foi mal interpretado e disse que não prega violência contra a mulher.

Autora do filme Escola de Homens, em que acompanha aulas de condenados pela Lei Maria da Penha, Sara explica que o discurso do “Coach do Campari”, no entanto, é menos agressivo do que os que encontrou em outros grupos masculinistas, principalmente no YouTube. Um dos principais hoje no País, segundo ela, é o MGTOW (Men Going Their Own Way – homens seguindo seu caminho, em tradução livre), cujos principais mandamentos são: não casar, não coabitar com mulher, não engravidar uma mulher, não se relacionar com mulher que tenha filhos.

Ela explica que os MGTOWs utilizam os termos blue pill, purple pill e red pill para se referir ao “estado de dormência” dos homens diante da realidade. Os termos foram roubados do filme Matrix. Nele, o personagem Morpheus oferece uma pílula vermelha e uma azul a outro personagem, Neo, interpretado por Keanu Reeves.

“O blue pill é o cara que acha que as leis estão ok, basta escolher a mulher certa. O purple pill sabe que as leis são ruins, mas se ilude fazendo um pré-nupcial. O red pill é o cara que entende que o sistema está contra ele e, em troca, vai contra o sistema”, escreveu a roteirista, em artigo na revista Marie Claire.

“Para esse movimento, o ‘soco de realidade’ para quem toma a pílula vermelha é o fato de que o Estado possui uma série de instrumentos legais, como a lei do divórcio, guarda de filhos, pensão alimentícia e até a Lei Maria da Penha, para ‘acabar’ com a vida dos homens e, portanto, eles deveriam parar de se relacionar com mulheres.”

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Em entrevista à Rádio Eldorado, Sara fala sobre o ódio dos grupos masculinistas a essas leis protetivas, sobre como jovens – incluindo filhos de mães solteiras – têm se aproximado deles e conta que também encontrou mulheres que apoiam o discurso contra mulheres. “São poucas, mas existem”, disse. Ouça a entrevista e veja abaixo os principais trechos da conversa.

Como começou sua pesquisa sobre grupos masculinistas na internet?

Começou há uns três anos. Lancei um documentário chamado Escola de Homens, no qual acompanho um grupo reflexivo de homens que foram denunciados pela Lei Maria da Penha. É um trabalho do Fórum de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Quando o vídeo foi para o YouTube, começaram a chover comentários. “Ah, homens, gados, que absurdo! MGTOW, red pill.” Vários homens começaram a comentar e a dar dislikes no vídeo. Eu pensei: ‘Gente, o que é red pill? Que história é essa? Aí fui atrás, comecei a investigar e achei uns grupos. Na verdade são canais no YouTube de influenciadores MGTOW. Isso levou a um outro caso mais extremista que já tinha sido banido do YouTube. É um influenciador que trouxe, segundo ele, o MGTOW para o Brasil, que é uma filosofia americana e canadense. Após ser banido, ele foi para um outro canal, uma plataforma de alcance mais reduzido e cheguei a essa plataforma, fiquei ouvindo, vendo os vídeos. Foi durante a pandemia. Imagine ficar no isolamento ouvindo o dia inteiro esses vídeos... Em 2020, cheguei a três influenciadores que entendi que eram os mais responsáveis pela disseminação dessas ideias e comecei a ver vídeos deles. E escrevi um texto sobre o que tinha visto. Mas na época estava prestes a lançar um livro que fala de violência doméstica e pensei: ‘Não vou mexer com isso agora, vou focar no meu livro (Elas em Legítima Defesa/ Editora DarkSide)’. Deixei quieto. Passou o tempo e, quando estourou o caso do Campari e todo mundo começou a falar de red pill, ouvi uma live desse coach e falei: ‘Gente, mas ele nem é um red pill autêntico segundo os absurdos que eu já ouvi antes. Fui ouvir as lives dele e vi que ele, apesar de misógino, não tinha tanta agressividade como os MGTOWs dos vídeos que tinha ouvido. Aí retomei o trabalho.

Como esses grupos se formaram e têm se desenvolvido?

São vários grupos. Por exemplo, esse cara do Campari não seria um MGTOW. Ele é um red pill, porque é um coach de relacionamento. Só que o relacionamento dele com as mulheres tem essa hierarquia: o homem como macho dominante e a mulher submissa. O MGTOW já evita as relações, o objetivo deles é nem se relacionar com mulheres. A machosfera sempre existiu, esse discurso de menosprezar e humilhar as mulheres tem muitos anos e já passou por vários momentos. Teve os machos alfa, os artistas da pegação, caras que acham que homens têm de ter direitos, sei lá uma “Lei João da Penha” porque a sociedade é misândrica (tem repulsa ou ódio contra os homens). O que tem acontecido recentemente é que, além de menosprezar e humilhar as mulheres, eles estão invertendo a situação, acham que o mundo está contra eles, que o feminismo acabou com a sociedade e eles são os oprimidos da vez. Os red pills e os MGTOWs têm esse discurso. Além de menosprezar, eles se colocam como as vítimas e as mulheres, como as grandes manipuladoras e interesseiras. Isso tem crescido. Em 2020, uma das páginas do MGTOW tinha 40 mil inscritos. Agora está com cento e poucos mil. O Campari tem mais alcance ainda porque acho que tem mais gente disposta a tomar red pill, que é a “pílula da realidade”, de entender que o mundo é misândrico na percepção deles. Ou seja, vamos nos relacionar com as mulheres, mas tem o que eles chamam de “red flags”. Se a mulher veste roupa curta, se a mulher é controladora, se é mulher fala o drinque que você vai beber, se a mulher tem filhos, se a mulher é mais velha (não serve)... Ou seja: se ela é mais velha, ela vai impor mais suas vontades, seus desejos. Também tem uma questão da objetificação muito grande. As mulheres com mais valor são as jovens, bonitas, magras, em idade reprodutiva. É a maneira com que eles vão se legitimar socialmente. (Eles acham que) elas são mais difíceis de conquistar, então eles vão ter mais valor ao lado delas.

Cena do filme "Matrix": simbologia das pílulas azul e vermelha tem sido usada por grupos masculinistas Foto: Youtube/Reprodução

Ao mesmo tempo, há rivalidade entre eles. Tem um grupo bem forte que eles chamam de tradcon. São os tradicionalistas conservadores, tipo um red pill que idolatra e defende a família conservadora e a mulher submissa (ao marido). Já os MGTOWs são totalmente diferentes: acham que se continuarem casando e tendo filhos não vão mudar o sistema. Mas na base de todos esses grupos está menosprezar estudos que entendem que o gênero é uma construção social e deslegitimar as conquistas das mulheres e da ciência em relação a gênero. Então o feminismo – que entende que mulheres e homens têm direitos iguais e deveriam ter oportunidades iguais – eles entendem como uma coisa biológica dos sexos. Em que o homem é o dominante e a mulher, a submissa. Às vezes por alguma questão religiosa, às vezes por uma questão de falsas crenças às quais eles acabam se apegando. Como é a psicologia feminina? Como é a psicologia masculina? Tem essa coisa do sexo também, de que é natural para o homem transar com várias mulheres e para mulher ter só um cara, ser submissa, passiva e servir ao homem.

Eles só trocam opiniões na internet ou também se reúnem?

Os incels – grupos de nerds, de meninos celibatários involuntários que são mais agressivos – ficam muito na deep web. Fora eles, os outros grupos ficam muito na internet mesmo. Até tentei procurar se tinha algum encontro deles. Antigamente, faziam palestras, encontros de homens e de masculinidade, mas hoje em dia vejo que é mais na internet. Coach online, o cara manda mensagem por WhatsApp, interagem muito nos (comentários dos) vídeos. Quando comecei não tinha páginas no Instagram, era mais no YouTube, mas agora eu vejo que o Instagram também está bombando com esses perfis menos extremistas, porque senão (a plataforma) derruba.

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Que perfis de homens participam desses grupos?

Tem muitos jovens que têm uma vulnerabilidade e estão começando (a se relacionar). Eles falam muito também da questão da mãe solteira. Vários homens não têm uma referência de masculinidade porque foram criados por mães solteiras. Só que essas mães solteiras (são vistas por eles) como culpadas da ausência paterna porque escolheram mal. Eles dizem: “Elas escolheram mal e querem agora um cara legal para cuidar do filho delas. Mas não, a gente não vai fazer isso porque a gente tem que ter os nossos próprios filhos com as mulheres corretas”. Os influencers se consideram pais desses meninos que não tiveram pai por culpa das mães que escolheram mal. Então eles têm muito esse discurso paternalista de “Ah, vou te mostrar o que é ser macho. Você não tem pai e eu vou fazer esse papel (de ensinar) como você vai tratar uma mulher, como vai escolher a mulher certa, quem são as mulheres que merecem sua atenção”. Esses coaches de relacionamento têm muito essa figura paterna e esse discurso contraditório da mãe solteira, da qual eles querem distância, mas querem ser o pai, o coach da masculinidade desses filhos. Esses são os meninos mais novos, que levaram um fora de uma mulher ou não sabem lidar com mulher e querem uma orientação desses coaches de 30, 40, agora quase 50 anos. Tem um outro perfil que são os homens mais velhos que passaram por frustrações. Ou a mulher traiu ou ficou com outro e fica pedindo pensão para o filho. Eles se sentem os injustiçados. Conheci há pouco tempo um que diz que tem medida protetiva, que não pode ver o filho, que é vítima de alienação parental, não pode ver a filha. Então ele fala muito que é injustiçado. Sabe-se lá o que fez para a mulher ter medida protetiva, mas, na cabeça dele, ela é que armou tudo. Então eles ficam muito revoltados contra as mulheres e contra o sistema que criou essas leis (protetivas). Como a da guarda de filhos, da alienação parental, do divórcio, da Maria da Penha. Às vezes falsa acusação de estupro. Um até falou que a melhor maneira de chegarem (nos grupos) é falsa acusação de estupro. Mas na cabeça do homem ele pode achar que não foi estupro uma “forçadinha”. Então a gente não sabe o que aconteceu de verdade, mas tem muitos desses “injustiçados” entre aspas.

Em que condições eles se dispõem a contar isso?

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Eles contam isso nos vídeos para os seguidores porque uma regra deles é não dar entrevistas. Eles usam aquela frase do filme Clube da Luta: “Para proteger o Clube da Luta, não fale sobre ele”. Então uma das regras é o anonimato, eles usam codinomes ou não mostram o rosto. Até tem dois que mostram a cara, mas não falam o nome verdadeiro. Eles falam que o mundo lá fora não vai entendê-los. Então não vamos falar porque eles não vão entender. Porque eles acordaram para uma “realidade” que só eles entendem. As informações eu peguei ouvindo os vídeos porque eles se expõem nos vídeos.

Você encontrou mulheres participando desses movimentos antimulheres?

Infelizmente encontrei. Acho que tem essa coisa da mulher sempre querer a validação do homem, né? Não fiz um estudo sobre elas, até gostaria de fazer. Existem essas mulheres que orbitam ali. São poucas, mas existem. Existem as mulheres dos caras, as mulheres desses tradcons, dessa galera que já é família e é diferente dos MGTOWs. E existem mulheres que assistem aos vídeos e falam: ‘Ah, cara, vi muita verdade no que você falou, eu penso igual’. Assinando embaixo dos caras. São poucas, mas existem. E eles valorizam, falam: ‘Oh, que bom ouvir isso de uma mulher’, acham o máximo.

Após mergulhar nesses grupos, como acha que a sociedade deve lidar com eles?

Essa é a pergunta de milhões. Porque é diferente da Escola de Homens que eu acompanhei. No grupo de homens que foram denunciados pela Lei Maria da Penha, a maioria era de baixa renda e eles não tinham noção de que o que faziam era errado. Por exemplo: violência psicológica, ameaça, injúria. Eles não sabiam que era errado. Na cabeça deles era certo. Então tem muita coisa de falta de informação. E faz diferença eles irem na Escola de Homens para entender o que é gênero, essa educação faz diferença. Não vão deixar de ser machistas do dia para a noite, mas vão entender, começar a olhar para si. “Eu achava que só ela era errada, mas eu também tenho culpa”: eu vi essa reflexão na Escola de Homens. Agora como esses caras (de grupos misóginos) já vivem nesse universo paralelo, a maioria sabe das leis, sabe o que é feminismo, eles têm essa consciência, só que negam e invertem a ordem. Como resolver isso na cabeça dessas pessoas no eu não sei. Dar uma medida educativa pra eles? Não sei. Punir a misoginia? Eu acho importante ter essa criminalização no sentido de falar: “Não toleramos isso, é crime, não é certo”. Como se fosse um aviso para a sociedade. Isso não é correto, não é legal. Agora até que ponto vai ser efetivo para acabar com isso eu tenho minhas dúvidas. Porque o cara que faz isso não vai ficar pensando. Primeiro porque ele se acha acima da lei, depois ele vai ficar mais revoltado se algo acontecer com ele, não vai mudar de ideia. Por outro lado, pode evitar que novas pessoas entrem nessa cegueira como se fosse coisa “normal, natural, liberdade de expressão”. Eles falam isso: “É liberdade de expressão”. Mas tem essa fronteira (muito tênue) entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio que vemos não só em relação à mulher. Tem muita subjetividade para julgar o que é ou não. Casos mais graves, como ameaças de morte e injúria ligada a gênero, são mais fáceis de identificar. Mas o discurso solto na web é muito difícil de julgar e punir. Mas acho que tem de ser debatido.

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