Em um ano marcado pela intensificação da guerra entre facções criminosas, a quantidade de mortes violentas em 2017 voltou a bater recorde no País, com 63.880 vítimas, o equivalente a 175 casos por dia, alta de 3,7% em relação ao ano anterior. O número absoluto de homicídios é o maior entre todos os países e a taxa de 30,8 registros por 100 mil habitantes coloca o Brasil entre os dez mais violentos do mundo.
Os dados, compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com informações das secretarias estaduais de Segurança e Polícias Civis, foram divulgados nesta quinta-feira, 9. A alta foi puxada por 12 Estados, nove deles das Regiões Norte e Nordeste, onde os efeitos das disputas das organizações criminosas foram sentidos em maior intensidade.
A maior taxa passou a ser do Rio Grande do Norte, onde no ano passado morreram 2.386 pessoas, levando a uma taxa de 68 por 100 mil habitantes - para comparação, o país mais violento do mundo, Honduras, tinha uma taxa de 55 em 2016. Acre (63,9) e Ceará (59,1) completam a lista dos Estados considerados mais violentos.
Foi também o Ceará que viveu o maior aumento proporcional da violência: 48,6%. O Estado criticou a metodologia e disse que vem melhorando os índices em 2018. As menores taxas foram constatadas em São Paulo (10,7), Santa Catarina (16,5) e Distrito Federal (18,2).
Massacres. O principal fator para a alta foi evidenciado no primeiro dia de 2017, quando detentos ligados à Família do Norte (FDN), facção da região da Amazônia, matou e mutilou 56 integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) no Complexo Anísio Jobim (Compaj) em Manaus. A FDN é aliada do Comando Vermelho (CV), organização criminosa do Rio.
Na mesma semana, 33 foram executados na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, e 26 na Penitenciária de Alcaçuz, na Grande Natal, dando dimensão nacional à disputa, que já tinha aparecido em menor grau em Rondônia e Mato Grosso do Sul. “Vivemos uma guerra aberta entre as organizações criminosas em busca de territórios e dinheiro. Isso agravou a situação (de homicídios), como no Acre e no Rio Grande do Norte. Essa nova dinâmica do crime chega com uma camada de crueldade, com casos recorrentes de decapitação das vítimas, por exemplo”, disse o diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima.
Essa guerra, explicam especialistas, está ligada à tentativa de expansão do controle do tráfico de drogas pelo PCC, que deixou de ser aliado do CV há cerca de dois anos. Depois, há a corrida de ambas as partes para filiar bandidos e expandir a atuação em Estados onde nem sempre a imposição das regras dos paulistas é bem-vinda. Isso levou a disputas nas penitenciárias, que também se espalharam para as ruas.
No Acre, um dos locais onde esses enfrentamentos têm sido mais graves, a aliança formada pela facção Bonde dos 13 e o PCC rivaliza com a união de FDN com o CV, com registros de dezenas de homicídio na disputa. No Rio Grande do Norte, é o Sindicato do Crime, cujos ataques coordenados na capital levaram o governo a pedir mais de uma vez a presença das Forças Armadas, que rivaliza com a facção paulista.
O sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), diz que os dados demonstram a falência da política nacional de segurança. “O Brasil hoje vive situação gravíssima nessa área, que se deteriora a cada ano, e essa deterioração em 2017 é bastante acentuada. Isso é fundamental porque fragiliza nossa democracia.”
O avanço dos homicídios está associado não só à guerra de facções, mas à desestruturação de políticas de segurança e dificuldades de Estados em investirem devidamente na área. Entre os principais desafios, acentuados pela crise econômica, estão reequipar polícias, realizar concursos e até pagar salários em dia, dizem pesquisadores.
Soluções. As possíveis saídas são diversas em diferentes campos, não só da segurança. O ponto mais frequente citado por estudiosos é a necessidade de modernizar e priorizar a atuação contra o crime organizado, com foco em inteligência, de modo a desarticular os grupos financeiramente. “Diante dessa nova dinâmica (do crime organizado), o Estado, em várias esferas, se viu perdido e resolveu responder da forma que se sempre fez, com mais policiamento ostensivo militarizado. Isso está dando resultados extremamente ruins em termos de cidadania, em gasto público, e não há o efeito esperado na redução da violência”, observa Renato Sérgio de Lima.
A recuperação da segurança passa também pelo seu financiamento. Dados do Fórum mostraram que, no ano passado, R$ 84,7 bilhões foram aplicados por municípios, Estados e União na segurança, sendo a maior parcela (R$ 69,8 bilhões) pelos Estados, que são os responsáveis pelo funcionamento das Polícias Militares e Civis.
Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann rebateu as críticas sobre a atuação do governo no combate ao crime organizado. Os especialistas, defendeu, “deveriam saber que não tínhamos nem sequer política nacional de segurança pública” em 2017. Disse ainda que o Sistema Único da Segurança Pública (Susp) - que prevê integrar dados do setor de todos os Estados - será implementado ainda este mês. O Colégio Nacional de Secretários de Segurança não comentou os dados.
MAIS DADOS
Desaparecidos O Fórum relatou 82.684 pessoas desaparecidas apenas em 2017. Os casos podem estar duplicados, uma vez que leva em consideração a quantidade de boletins de ocorrências registrados, e não casos únicos.
Armas Ao longo dos 12 meses de 2017, as polícias estaduais e federais apreenderam 119.484 armas de fogo, o equivalente a 327 por dia. Os especialistas chamam atenção para o fato de 94,9% dessas apreensões não terem sido cadastradas no sistema da Polícia Federal (Sinarm), dificultando investigações sobre a origem do armamento. Do total, 13.782 armas apreendidas saíram do mercado legal e acabaram perdidas, extraviadas ou roubadas, tendo parado na mão de criminosos.
Presos O Fórum registrou uma população carcerária de 729.463 pessoas, sendo 689.947 em unidades do sistema prisional e 39.517 custodiadas em delegacias de polícia. A situação é de superlotação na maioria dos Estados. A exceção é nas unidades penitenciárias federais, que tem 832 vagas e 437 presos./ COLABORARAM JULIANA DIÓGENES, PAULA FELIX, FELIPE RESK, JULIA LINDNER e TÂNIA MONTEIRO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.