Há 30 anos, com o País abalado pelo brutal assassinato da atriz Daniella Perez, uma mobilização popular levou a um modificação da Lei de Crimes Hediondos. Delitos praticados com violência e repugnantes aos olhos da sociedade passaram a receber punição mais rigorosa. “Foi um grito contra a impunidade”, disse a mãe da atriz, a escritora Glória Perez, que iniciou e conduziu a campanha.
Ao longo dos anos, à medida que novos casos de crimes bárbaros foram incluídos na crônica policial brasileira, a lei foi se tornando ainda mais abrangente.
Especialistas, no entanto, contestam a eficácia do chamado Direito Penal de emergência. Além de não reduzir a criminalidade e contribuir para a superlotação dos presídios, o agravamento das penalidades não foi acompanhado de melhoria na investigação criminal, segundo eles. Assim, apesar do rigor da lei, a maioria dos crimes violentos, como os homicídios, permanece impune porque não foi nem sequer identificada a autoria.
Para Glória, a lei já foi afrouxada. “Crime deve ter punição. A vida é muito barata por aqui”, disse.
No dia 28 de dezembro de 1992, aos 22 anos de idade, a atriz Daniella Perez foi morta a golpes de punhal pelo ator Guilherme de Pádua, que morreu em novembro deste ano, e pela mulher dele, Paula Thomaz, no Rio de Janeiro. Vítima e assassino atuavam na novela De Corpo e Alma, da TV Globo.
Até a morte de Daniella, a Lei dos Crimes Hediondos, em vigor desde 1990, abrangia casos de sequestro, estupro e latrocínio (roubo com morte). Inconformada por saber que o casal responderia pelo processo em liberdade, Glória Perez iniciou uma campanha para incluir o homicídio nessa lei.
Juntaram-se a ela as mães de outras vítimas de crimes brutais acontecidos na mesma época, como Jocélia Brandão e Valéria de Velasco. A filha de Jocélia, a menina Miriam, de 5 anos, foi sequestrada e estrangulada em Belo Horizonte. Os criminosos esquartejaram e queimaram o corpo. Em Brasília, integrantes de uma gangue autodenominada Falange Satânica espancaram até a morte o estudante Marco Antônio Velasco, de 16 anos.
Com o envolvimento de atores e de outras personalidades, como o apresentador Jô Soares e o médium Chico Xavier, o abaixo assinado organizado por Glória reuniu 1,3 milhão de assinaturas. Os papéis correram de mão em mão para a coleta das assinaturas. Acompanhada de artistas e advogados, Glória entregou o abaixo-assinado ao Congresso em outubro de 1993.
A quantidade de adesões seria suficiente para um projeto de lei de iniciativa popular, mas a Câmara dos Deputados não dispunha de meios para conferir a autenticidade das assinaturas. A solução encontrada foi incluir a proposta de Glória Perez em um projeto que já estava sendo analisado pelos deputados.
O projeto, que transformava em crime hediondo o homicídio cometido por grupo de extermínio, foi apresentado pelo governo após a repercussão de casos como a chacina do Acari, em 1990, e o massacre da Candelária, em 1993, ambos no Rio de Janeiro. Nos dois casos, houve mais de dez mortos, a maioria crianças e adolescentes.
A nova lei foi aprovada pelo Parlamento em agosto de 1994 e sancionada pelo então presidente Itamar Franco em setembro daquele ano.
A proposta de Glória Perez transformava em crime hediondo especificamente o homicídio qualificado – aquele cometido por motivo torpe ou fútil, mediante pagamento, por emboscada ou outros meios que impossibilitem a defesa da vítima.
A autora tinha consciência de que a mudança na lei não atingiria as penas de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, já que, pela lei, uma norma nova não pode retroagir em prejuízo dos réus.
Lei passou por outras alterações nas últimas décadas
Ao longo destes 30 anos, a Lei de Crimes Hediondos sofreu inúmeras alterações. Passaram a figurar na regra, entre outros crimes, a falsificação de remédios, o feminicídio, a exploração sexual de criança ou adolescente, o tráfico de armas e a posse de arma de fogo sem autorização.
A última alteração aconteceu em maio deste ano, quando foi sancionada lei passando a considerar hediondo o crime de homicídio praticado contra menor de 14 anos.
A inclusão ficou conhecida como Lei Henry Borel, em referência ao menino de 4 anos assassinado em março de 2021, no Rio. Se o autor do crime é parente ou tutor, a pena é aumentada.
Quando um crime é considerado hediondo, há um impacto significativo sobre os benefícios que a lei confere aos condenados, explica o jurista Leonardo Pantaleão, especialista em Processo Penal.
“Algumas benesses ficam vedadas, pois crime não admite anistia, graça, indulto e fiança. O prazo de progressão de regime é muito maior.” A lei exige o cumprimento de pelo menos 40% da pena no regime fechado, podendo chegar a 70% se o réu tiver antecedentes ou conforme a gravidade do crime.
Ele lembra que o pacote anti-crime do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em 2019, incluiu novos delitos que antes não eram considerados hediondos. “Antes de 2019, quando se pensava no crime de roubo, apenas o latrocínio era crime hediondo. Agora, além do latrocínio, você tem outras situações diferentes em que o roubo é assim considerado. O roubo com restrição à liberdade da vítima, por exemplo, quando o criminoso tranca as vítimas no banheiro, e ainda o roubo com emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito.”
A extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima – o sequestro relâmpago – ou quando resulta em lesão corporal ou morte também passou a ser crime hediondo.
“O furto, um crime que via de regra não envolve violência, passa a ser considerado hediondo quando a pessoa se vale de explosivo – claro que aí o legislador quis abarcar a explosão de caixas eletrônicos. A posse ou porte de arma de fogo de uso proibido também, assim como o comércio ilegal de arma de fogo, o tráfico internacional de arma, acessório ou munição, o crime de organização criminosa, tudo crime hediondo. Caminhando nessa velocidade, o risco é de tornar o crime hediondo a regra, não a exceção”, disse.
Certeza da punição
Para Pantaleão, embora o legislador se mostre atento aos reclamos sociais fazendo o que ele acha que vai diminuir a criminalidade, não adianta somente aumentar a pena de determinados crimes ou o rigor da punição.
“O que vai diminuir a criminalidade de maneira efetiva é a certeza da punição. De que adianta aumentar a pena de homicídio para hipotéticos 100 anos, se a quantidade de delitos dessa natureza desvendados pela polícia investigativa é mínima? As estatísticas mostram que não chegam a 10%.”
Para ele, seria mais razoável investir em tecnologia e aparelhar os órgãos de investigação com inteligência para inverter essa proporção. “Se dos 100% dos crimes de autoria desconhecida, apenas 10% não fossem desvendados, isso traria muito mais impacto sobre o potencial criminoso. Se hoje o criminoso tem 90% de chance de ficar impune, por que se preocuparia com o tempo que vai ficar preso? É utopia achar que o rigor da lei é suficiente para conter a criminalidade. O que precisa ter é a certeza da punição.”
Punição e políticas de segurança
Já o jurista Matheus Falivene, professor de Direito Penal, acha que a lei dos crimes hediondos é adequada para a realidade atual, mas é preciso melhorar as políticas públicas na área de segurança.
“Houve uma adequação na lei nesses 30 anos. O legislador aperfeiçoou em alguns pontos, errou em outros, mas adequou ao anseio social por penas mais longas para crimes bárbaros. A execução da pena era muito branda e a lei tornou a progressão de regime mais difícil. Em termos teóricos, aumentar o tempo de pena é ruim, pois afeta a ressocialização do preso e aumenta a população carcerária, mas arrefece a sensação de impunidade”, disse.
O problema, segundo ele, é que a lei dos crimes hediondos não veio acompanhada de uma reformulação na segurança pública.
“No Brasil, a gente tem a ideia de que só promulgar uma lei resolve o problema. Para reduzir efetivamente a criminalidade, era preciso rever muitos aspectos das políticas de segurança pública, o que não aconteceu. Mas entendo que a lei está adequada para o que a sociedade demanda hoje em dia. Gera um efeito de prevenção geral. Quanto mais longa a pena, mais medo a pessoa tem de cometer um crime.”
A advogada especialista em gestão de segurança pública Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, discorda. “A gente insiste no Brasil no erro de achar que o que resolve a criminalidade é o endurecimento da legislação, aumentar a pena. Essa é a resposta que o Congresso dá para a criminalidade e isso é mundialmente comprovado que não funciona na prática, ou o efeito de dissuadir e impedir o crime é muito pequeno.”
Para ela, a lei é um marco de uma lógica legislativa equivocada, que trabalha só com a punição. “Gerou consequências ruins para o sistema prisional com maior permanência de pessoas lá dentro, ainda mais um sistema em que você não tem perspectiva de ressocialização. Falta à política criminal do Brasil ser mais baseada em ciência e menos em achismo, menos em clamor popular.”
Mais importante, segundo ela, seria aprovar um projeto de lei exigindo que, para se aprovar uma lei criminal, é preciso fazer uma análise do impacto.
Criação de uma lei
Atualmente, as pessoas não precisariam ter o mesmo trabalho que teve Glória Perez na tentativa de criar ou alterar uma lei. Qualquer cidadão pode sugerir uma ideia de lei, inclusive na área de segurança pública, acessando o Portal e-Cidadania criado há dez anos pelo Senado.
Quando recebe o apoio de 20 mil pessoas, a sugestão é enviada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) que decide se ela será transformada em um projeto de lei a ser estudado e votado pelo Senado.
Veja quais crimes estão previstos na lei de crimes hediondos
- Homicídio quando praticado em grupos de extermínio e homicídio qualificado (que inclui o feminicídio).
- Roubo: 1) quando há restrição de liberdade da vítima; 2) quando há emprego de arma de fogo ou de uso proibido ou restrito; 3) quando resulta em lesão corporal gravíssima ou morte (latrocínio).
- Extorsão qualificada pela restrição de liberdade da vítima com ocorrência de lesão corporal ou morte.
- Extorsão mediante sequestro na forma qualificada.
- Estupro. Estupro de vulnerável.
- Epidemia com resultado morte.
- Falsificação, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos e medicinais.
- Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável.
- Genocídio.
- Crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido.
- Comércio ilegal de arma de fogo.
- Crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição.
- Crime de organização criminosa quando direcionada à prática de crime hediondo ou equiparado.
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