Há 30 anos, morte de Daniella Perez mudou a lei de crimes hediondos. O que aconteceu de lá para cá?

Morte da atriz de 22 anos causou comoção no País e, liderado pela mãe da vítima, Gloria Perez, movimento obteve alteração na legislação. Especialistas debatem eficácia de medida

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Foto do author José Maria Tomazela
Atualização:

Há 30 anos, com o País abalado pelo brutal assassinato da atriz Daniella Perez, uma mobilização popular levou a um modificação da Lei de Crimes Hediondos. Delitos praticados com violência e repugnantes aos olhos da sociedade passaram a receber punição mais rigorosa. “Foi um grito contra a impunidade”, disse a mãe da atriz, a escritora Glória Perez, que iniciou e conduziu a campanha.

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Ao longo dos anos, à medida que novos casos de crimes bárbaros foram incluídos na crônica policial brasileira, a lei foi se tornando ainda mais abrangente.

Especialistas, no entanto, contestam a eficácia do chamado Direito Penal de emergência. Além de não reduzir a criminalidade e contribuir para a superlotação dos presídios, o agravamento das penalidades não foi acompanhado de melhoria na investigação criminal, segundo eles. Assim, apesar do rigor da lei, a maioria dos crimes violentos, como os homicídios, permanece impune porque não foi nem sequer identificada a autoria.

Para Glória, a lei já foi afrouxada. “Crime deve ter punição. A vida é muito barata por aqui”, disse.

Glória Perez durante coletiva de imprensa após julgamento de Guilherme de Pádua Foto: RAIMUNDO VALENTIM/ESRADÃO - 25/01/1997

No dia 28 de dezembro de 1992, aos 22 anos de idade, a atriz Daniella Perez foi morta a golpes de punhal pelo ator Guilherme de Pádua, que morreu em novembro deste ano, e pela mulher dele, Paula Thomaz, no Rio de Janeiro. Vítima e assassino atuavam na novela De Corpo e Alma, da TV Globo.

Até a morte de Daniella, a Lei dos Crimes Hediondos, em vigor desde 1990, abrangia casos de sequestro, estupro e latrocínio (roubo com morte). Inconformada por saber que o casal responderia pelo processo em liberdade, Glória Perez iniciou uma campanha para incluir o homicídio nessa lei.

Juntaram-se a ela as mães de outras vítimas de crimes brutais acontecidos na mesma época, como Jocélia Brandão e Valéria de Velasco. A filha de Jocélia, a menina Miriam, de 5 anos, foi sequestrada e estrangulada em Belo Horizonte. Os criminosos esquartejaram e queimaram o corpo. Em Brasília, integrantes de uma gangue autodenominada Falange Satânica espancaram até a morte o estudante Marco Antônio Velasco, de 16 anos.

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Com o envolvimento de atores e de outras personalidades, como o apresentador Jô Soares e o médium Chico Xavier, o abaixo assinado organizado por Glória reuniu 1,3 milhão de assinaturas. Os papéis correram de mão em mão para a coleta das assinaturas. Acompanhada de artistas e advogados, Glória entregou o abaixo-assinado ao Congresso em outubro de 1993.

A quantidade de adesões seria suficiente para um projeto de lei de iniciativa popular, mas a Câmara dos Deputados não dispunha de meios para conferir a autenticidade das assinaturas. A solução encontrada foi incluir a proposta de Glória Perez em um projeto que já estava sendo analisado pelos deputados.

Guilherme de Pádua, assassino de Daniella Perez, durante julgamento do caso Foto: FERNANDO RODRIGUES/ESTADÃO - 25/01/1997

O projeto, que transformava em crime hediondo o homicídio cometido por grupo de extermínio, foi apresentado pelo governo após a repercussão de casos como a chacina do Acari, em 1990, e o massacre da Candelária, em 1993, ambos no Rio de Janeiro. Nos dois casos, houve mais de dez mortos, a maioria crianças e adolescentes.

A nova lei foi aprovada pelo Parlamento em agosto de 1994 e sancionada pelo então presidente Itamar Franco em setembro daquele ano.

A proposta de Glória Perez transformava em crime hediondo especificamente o homicídio qualificado – aquele cometido por motivo torpe ou fútil, mediante pagamento, por emboscada ou outros meios que impossibilitem a defesa da vítima.

A autora tinha consciência de que a mudança na lei não atingiria as penas de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, já que, pela lei, uma norma nova não pode retroagir em prejuízo dos réus.

Cena da série documental 'Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez', dirigida por Tatiana Issa e Guto Barra Foto: HBO Max/Reprodução

Lei passou por outras alterações nas últimas décadas

Ao longo destes 30 anos, a Lei de Crimes Hediondos sofreu inúmeras alterações. Passaram a figurar na regra, entre outros crimes, a falsificação de remédios, o feminicídio, a exploração sexual de criança ou adolescente, o tráfico de armas e a posse de arma de fogo sem autorização.

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A última alteração aconteceu em maio deste ano, quando foi sancionada lei passando a considerar hediondo o crime de homicídio praticado contra menor de 14 anos.

A inclusão ficou conhecida como Lei Henry Borel, em referência ao menino de 4 anos assassinado em março de 2021, no Rio. Se o autor do crime é parente ou tutor, a pena é aumentada.

O menino Henry Borel foi assassinado aos 4 anos, em março de 2021. Foto: Reprodução: Instagram

Quando um crime é considerado hediondo, há um impacto significativo sobre os benefícios que a lei confere aos condenados, explica o jurista Leonardo Pantaleão, especialista em Processo Penal.

“Algumas benesses ficam vedadas, pois crime não admite anistia, graça, indulto e fiança. O prazo de progressão de regime é muito maior.” A lei exige o cumprimento de pelo menos 40% da pena no regime fechado, podendo chegar a 70% se o réu tiver antecedentes ou conforme a gravidade do crime.

Ele lembra que o pacote anti-crime do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em 2019, incluiu novos delitos que antes não eram considerados hediondos. “Antes de 2019, quando se pensava no crime de roubo, apenas o latrocínio era crime hediondo. Agora, além do latrocínio, você tem outras situações diferentes em que o roubo é assim considerado. O roubo com restrição à liberdade da vítima, por exemplo, quando o criminoso tranca as vítimas no banheiro, e ainda o roubo com emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito.”

A extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima – o sequestro relâmpago – ou quando resulta em lesão corporal ou morte também passou a ser crime hediondo.

“O furto, um crime que via de regra não envolve violência, passa a ser considerado hediondo quando a pessoa se vale de explosivo – claro que aí o legislador quis abarcar a explosão de caixas eletrônicos. A posse ou porte de arma de fogo de uso proibido também, assim como o comércio ilegal de arma de fogo, o tráfico internacional de arma, acessório ou munição, o crime de organização criminosa, tudo crime hediondo. Caminhando nessa velocidade, o risco é de tornar o crime hediondo a regra, não a exceção”, disse.

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Certeza da punição

Para Pantaleão, embora o legislador se mostre atento aos reclamos sociais fazendo o que ele acha que vai diminuir a criminalidade, não adianta somente aumentar a pena de determinados crimes ou o rigor da punição.

“O que vai diminuir a criminalidade de maneira efetiva é a certeza da punição. De que adianta aumentar a pena de homicídio para hipotéticos 100 anos, se a quantidade de delitos dessa natureza desvendados pela polícia investigativa é mínima? As estatísticas mostram que não chegam a 10%.”

Para ele, seria mais razoável investir em tecnologia e aparelhar os órgãos de investigação com inteligência para inverter essa proporção. “Se dos 100% dos crimes de autoria desconhecida, apenas 10% não fossem desvendados, isso traria muito mais impacto sobre o potencial criminoso. Se hoje o criminoso tem 90% de chance de ficar impune, por que se preocuparia com o tempo que vai ficar preso? É utopia achar que o rigor da lei é suficiente para conter a criminalidade. O que precisa ter é a certeza da punição.”

Punição e políticas de segurança

Já o jurista Matheus Falivene, professor de Direito Penal, acha que a lei dos crimes hediondos é adequada para a realidade atual, mas é preciso melhorar as políticas públicas na área de segurança.

“Houve uma adequação na lei nesses 30 anos. O legislador aperfeiçoou em alguns pontos, errou em outros, mas adequou ao anseio social por penas mais longas para crimes bárbaros. A execução da pena era muito branda e a lei tornou a progressão de regime mais difícil. Em termos teóricos, aumentar o tempo de pena é ruim, pois afeta a ressocialização do preso e aumenta a população carcerária, mas arrefece a sensação de impunidade”, disse.

O problema, segundo ele, é que a lei dos crimes hediondos não veio acompanhada de uma reformulação na segurança pública.

“No Brasil, a gente tem a ideia de que só promulgar uma lei resolve o problema. Para reduzir efetivamente a criminalidade, era preciso rever muitos aspectos das políticas de segurança pública, o que não aconteceu. Mas entendo que a lei está adequada para o que a sociedade demanda hoje em dia. Gera um efeito de prevenção geral. Quanto mais longa a pena, mais medo a pessoa tem de cometer um crime.”

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A advogada especialista em gestão de segurança pública Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, discorda. “A gente insiste no Brasil no erro de achar que o que resolve a criminalidade é o endurecimento da legislação, aumentar a pena. Essa é a resposta que o Congresso dá para a criminalidade e isso é mundialmente comprovado que não funciona na prática, ou o efeito de dissuadir e impedir o crime é muito pequeno.”

Para ela, a lei é um marco de uma lógica legislativa equivocada, que trabalha só com a punição. “Gerou consequências ruins para o sistema prisional com maior permanência de pessoas lá dentro, ainda mais um sistema em que você não tem perspectiva de ressocialização. Falta à política criminal do Brasil ser mais baseada em ciência e menos em achismo, menos em clamor popular.”

Mais importante, segundo ela, seria aprovar um projeto de lei exigindo que, para se aprovar uma lei criminal, é preciso fazer uma análise do impacto.

Criação de uma lei

Atualmente, as pessoas não precisariam ter o mesmo trabalho que teve Glória Perez na tentativa de criar ou alterar uma lei. Qualquer cidadão pode sugerir uma ideia de lei, inclusive na área de segurança pública, acessando o Portal e-Cidadania criado há dez anos pelo Senado.

Quando recebe o apoio de 20 mil pessoas, a sugestão é enviada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) que decide se ela será transformada em um projeto de lei a ser estudado e votado pelo Senado.

Veja quais crimes estão previstos na lei de crimes hediondos

  • Homicídio quando praticado em grupos de extermínio e homicídio qualificado (que inclui o feminicídio).
  • Roubo: 1) quando há restrição de liberdade da vítima; 2) quando há emprego de arma de fogo ou de uso proibido ou restrito; 3) quando resulta em lesão corporal gravíssima ou morte (latrocínio).
  • Extorsão qualificada pela restrição de liberdade da vítima com ocorrência de lesão corporal ou morte.
  • Extorsão mediante sequestro na forma qualificada.
  • Estupro. Estupro de vulnerável.
  • Epidemia com resultado morte.
  • Falsificação, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos e medicinais.
  • Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável.
  • Genocídio.
  • Crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido.
  • Comércio ilegal de arma de fogo.
  • Crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição.
  • Crime de organização criminosa quando direcionada à prática de crime hediondo ou equiparado.
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