‘Há uma mudança na identidade brasileira que parte das pessoas negras’; leia entrevista

Professor analisa o impacto do aumento de pessoas pretas e pardas na política, economia e nos meios de comunicação; Censo do IBGE mostra pela 1ª vez mais pardos do que brancos no Brasil

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:
Foto: Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais
Entrevista comHelio SantosProfessor, ativista e consultor

Quando escreveu A Busca de um Caminho para o Brasil: A Trilha do Círculo Vicioso, no início dos anos 2000, o professor, ativista e consultor Helio Santos identificou um problema entre os negros brasileiros que, segundo ele, não existe mais: a questão da identidade. Segundo o especialista, a afirmação da identidade parda e preta, que se evidencia em levantamentos nacionais, atesta esse movimento.

Nesta sexta-feira, 22, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os dados sobre a distribuição racial do Brasil, do Censo 2022. Pela primeira vez desde o início da série histórica, em 1991, a parcela da população que se declarou parda foi maior do que a fatia que se identifica como branca.

“Provavelmente alguns brancos passaram a se identificar como pardos e alguns pardos, por sua vez, passaram a se identificar como pretos. A população se posiciona de maneira mais positiva. É uma questão identitária”, afirma o professor, que também é presidente do Conselho Deliberativo do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) e presidente do Conselho da Oxfam Brasil.

Ao Estadão, Santos também aponta mudanças que podem ser impulsionadas, das políticas públicas aos meios de comunicação, pelo aumento da população que se autodeclara preta e parda.

Quais mudanças podem ser impulsionadas pelo aumento da população preta e parda?

A partir daqui, qualquer política pública, como política de cotas na universidade, no serviço público e também para as empresas, que seja inferior à destinação de 50% das vagas para negros, não vai impactar. Se houver interesse em impactar, ou seja, de reduzir as diferenças, a cota não pode ser inferior a 50%. Qualquer política pública inferior a esse patamar será um ‘band-aid’ (esparadrapo) para curar fratura exposta.

A primeira mudança é a criação de políticas públicas mais focadas na questão racial?

O aumento da população negra exige que as políticas públicas tenham centralidade na questão racial. Esse aumento exige algo o que o Estado brasileiro nunca fez. É difícil um acadêmico usar a expressão “nunca”. Eu estou usando. Nunca houve centralidade na questão racial.

Mas as cotas raciais não têm sido positivas?

As cotas foram uma luta e uma conquista importante. Isso vem reduzindo as diferenças, mas temos de pisar mais fundo no acelerador. O racismo é sistêmico e inercial. Os efeitos acabam retroalimentando suas causas. Uma pesquisa do Cedra mostra que as escolas públicas majoritariamente negras, com mais de 60% dos alunos negros, só têm um terço de professores com formação adequada. Nas escolas majoritariamente brancas, a formação dos professores duplica. Nenhum secretário da educação determina que tem de ser assim. É inercial.

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E qual é o reflexo do aumento de pretos e pardos para a sociedade?

Um dos problemas que citei no meu livro de 2001 (A busca de um caminho para o Brasil) não posso citar mais: a questão da identidade. Isso mudou. Provavelmente alguns brancos passaram a se identificar como pardos e alguns pardos, por sua vez, passaram a se identificar como pretos. A população se posiciona de maneira mais positiva. É uma questão identitária. A segunda, a mais importante, é a de cunho político-eleitoral. No futuro próximo, essas pessoas vão se posicionar de forma política e exigir ações públicas. Os políticos terão de se reposicionar diante dessas políticas. Independentemente do governo. O Brasil experimentará grandes mudanças. Acredito que em 2024 teremos o início do debate sobre as reparações. A sociedade já está preparada para isso.

Há crescimento significativo das pessoas que se autodeclaram pretas...

Esse fenômeno reforça a questão da identidade. Esse fato talvez mereça ainda maior ênfase nas análises. O primeiro censo do IBGE é de 1872, 16 anos antes da abolição (da escravidão). Na época, tínhamos 20% de pretos e 42% de pardos. A soma é igual a 62% de negros. Por outro lado, eram 38% de brancos. Isso se inverte. A população preta nunca deixa de cair e chegou a 5% em 1991. Os estudiosos diziam que era um grupo em extinção. Cada ponto porcentual são 2 milhões de pessoas. Isso significa 25 Maracanãs lotados porque no estádio cheio cabe 69 mil pessoas. Isso mudou. É uma nova visão da identidade.

Como assim?

Algumas emissoras de TV trabalham com pesquisa profunda na sociedade. Não fazem nada sem pesquisa. E vemos esse movimento nas novelas e na publicidade. São famílias mistas à mesa de Natal, algo impensável há 10, 20 anos. As artistas mais importantes do Brasil são mulheres negras. Os meios de comunicação, o campo cultural e os publicitários já perceberam a mudança na sociedade. O campo político e os economistas, ainda não. Há uma mudança no cunho identitário nacional e isso está dentro das pessoas. Isso vai reverberar. Não foi à toa que o Brasil foi o último a acabar com a escravidão, o primeiro a se autoproclamar como democracia racial e o último a adotar políticas afirmativas. É um País tardio. Mas essa mudança vai causar impactos importantes.

Grupos e coletivos negros se reúnem na Av. Paulista, em São Paulo, em ato pelo dia da Consciência Negra. FOTO TABA BENEDICTO / ESTADAO Foto: TABA BENEDICTO / undefined

O senhor mencionou os economistas. Qual é a relação entre as questões raciais e a economia no Brasil?

As propostas que existem para o desenvolvimento econômico não dão centralidade à questão racial. O último relatório do Global Health Report (lançamento do banco suíço UBS) afirma que 48,4% da riqueza nacional estão nas mãos de 1% dos brasileiros. Superamos o Catar (em termos de concentração de renda). O Brasil é o país que menos distribui riqueza no mundo. Por outro lado, fomos incluídos entre os países mais ricos do mundo. Superamos o Canadá. O Brasil é a 9ª nação mais rica e aquela que tem maior concentração de renda. Aí, você me pergunta: qual é a influência da questão racial?

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É total. Dos 10 países mais ricos do mundo, o Brasil é o único de maioria negra. Em contrapartida, o Brasil está nos grupos dos mais desiguais, junto com Lesoto, Gabão, Zâmbia, países que tiveram autonomia menos de meio século atrás. A população negra cresce, mas é importante saber que ela é precarizada. Em 2005, eram 5 milhões de pessoas no Bolsa Família; em 2012, 13 milhões; hoje, são 21 milhões. A esmagadora maioria das famílias é negra.

É evidente que o programa é necessário, mas é um triste sucesso. A redução dos participantes na Bolsa Família vai depender da empregabilidade. Em 2021, a taxa de desocupação branca do IBGE era de 11%; da população preta, 16,5%, e dos pardos, 16,2%. Pretos e pardos, novamente, estão juntos na precariedade. As políticas públicas têm de levar isso em conta, em todos os aspectos, na saúde, educação, segurança. Hoje isso não existe e, não há, sequer, essa perspectiva.

Como o senhor vê a separação entre pretos e pardos em algumas pesquisas?

Dados do IBGE de 2021 mostram que a renda média do trabalhador preto é R$ 1764. A renda média do trabalhador pardo é de R$ 1814, ou seja, R$ 50 a mais. A renda do trabalhador branco é R$ 3,1 mil. O trabalhador preto recebe 57% do trabalhador branco. E o pardo recebe 58% desse valor. De acordo com dados do Banco Mundial, de cada 100 pessoas, 19 estão abaixo da linha da pobreza. Se pensarmos em pretos e pardos, salta para 35 e 38, respectivamente. Pretos e pardos estão colados e distantes dos brancos do ponto de vista econômico. A junção desses dois grupos não é arbitrária: eles têm o mesmo perfil.

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* Este conteúdo foi produzido em parceria com o Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdade Racial (Cedra)

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