O Rio quase perdeu a Lagoa Rodrigo de Freitas numa aposta, lembra o jornalista Marcos Sá Corrêa. Isso ocorreu há 73 anos, quando o arquiteto Lúcio Costa sugeriu ao governo a construção de uma cidade universitária literalmente dentro da lagoa, fincada na água por pilastras de concreto. Na década anterior, o urbanista francês Alfred Agache havia proposto, em seu plano de "remodelação, extensão e embelezamento" do Rio, o aterro de um quarto do espelho d"água para a criação do Bairro Jardim. Em 1894, o médico Oswaldo Cruz recomendara o aterramento total da Rodrigo de Freitas, considerada por ele "laboratório perene de infecção" - o objetivo era "proteger a população de doenças comuns em pântanos".Nenhuma dessas ideias colou. No entanto, a paisagem natural e a geografia da lagoa foram bastante alteradas desde a origem. "Ela pode hoje ser considerada uma sobrevivente, mas isso não ocorreu sem que fosse pago um alto preço, equivalente a quase metade de sua área original", aponta o arquiteto e urbanista Augusto Ivan de Freitas Pinheiro. Ele e a mulher, Eliane Canedo, também urbanista, foram convidados pela Editora Andrea Jakobsson Estúdio para organizar o livro Lagoa, que será lançado hoje. A evolução urbana de um cartão-postal ganhou 288 páginas, ilustradas com fotografias raras (principalmente de Augusto Malta), reproduções de pinturas do século 19 (Thomas Ender e Nicolao Antonio Fachinetti, entre outros), plantas e um mapa inédito que mostra o avanço de aterros nos últimos 200 anos. As fotos atuais são de Marco Terranova, que flagrou o retorno de biguás à lagoa, com a recente redução da poluição da água. Sá Corrêa escreveu o texto de abertura.Desde a chegada dos portugueses, ela mudou algumas vezes de nome - Lagoa de Sacopenapã, do Fagundes, do Freitas e, finalmente, Lagoa Rodrigo de Freitas. Manteve sempre a designação lagoa, apesar de se tratar, de fato, de uma laguna, cuja origem foi o mar, responsável pela (hoje eventual) renovação das águas. O nome veio do capitão Rodrigo de Freitas Castro (1686-1748). Ao se casar com uma herdeira da família Fagundes, ele assumiu a propriedade do Engenho de N. S. da Conceição, que havia sido construído na década de 1570 pelo governo no local onde está o Jardim Botânico, então às margens da lagoa. Sua família ficou com a posse das terras até 1808. Com a chegada da Corte portuguesa, elas foram desapropriadas e incorporadas por decreto de d. João VI, para ali implementar a Real Fábrica de Pólvora."A lagoa serviu durante muito tempo para o engenho, para o plantio de cana-de-açúcar. Depois vieram as fábricas, que dependiam de novo da água. A função econômica esteve sempre presente", explica Pinheiro no capítulo Um bairro nascido das águas, escrito em parceria com Nina Rabha. "A indústria imobiliária também se aproveitou do aterro feito no entorno dela. Agora é um equipamento turístico e esportivo importante para a cidade."O livro resgata imagens esquecidas de favelas margeando a lagoa. Mostra que, segundo o Censo de 1950, 21.817 pessoas viviam em favelas na região. Todas as favelas foram erradicadas até a década de 1970. Seus moradores, removidos para vilas próximas ou para conjuntos habitacionais distantes, como os da Cidade de Deus (zona oeste) e o de Guaporé-Quitungo, na Penha (zona norte). Neste, foi reassentada grande parte dos moradores da Favela da Catacumba, que virou um parque. Outro exemplo é a Praia do Pinto. Maior favela da zona sul carioca até então, sofreu um incêndio na década de 1960. Em seu lugar foi erguido um condomínio de prédios conhecido como Selva de Pedra.O urbanista cita as praias da zona sul como fator involuntário de preservação. "Nas primeiras décadas do século passado, a praia passou a não ser mais aquela coisa que ninguém ligava, passou a ter valor econômico e a atrair a população. Isso deu uma folga para a lagoa de uns 50 anos. Aí, quando o interesse se voltou para lá, já havia outro tipo de consciência na cidade." Pinheiro lembra que a ideia de preservação só tomou força a partir de 1975, com um decreto que limitava os aterros na região. Hoje, a lagoa é um dos bairros mais valorizados do Rio. E um dos mais protegidos pela legislação urbanística.SOCÓNo capítulo Espaço em movimento, Eliane volta no tempo e reconstitui os processos de formação geomorfológica do litoral para tentar decifrar os fenômenos ambientais da lagoa. Recupera relatos feitos há dois séculos de fatos que até hoje desafiam governantes e especialistas: as inundações e as mortandades de peixes. Moradora do oitavo andar de um prédio com linda vista da lagoa, ela escolheu como símbolo do livro o socó, bicho apontado como o mais antigo da região. "O Tom Jobim dizia que o socó é um pássaro feioso, deselegante, vagabundo, mas que aguenta firme. Ele é encantador."O livro é dedicado ao engenheiro Francisco Rodrigues Saturnino de Brito (1864- 1929), que, ao propor e conduzir as primeiras obras dos canais de saneamento da lagoa, "recomendou cautela e observação". Custa R$ 95. Foi patrocinado por meio de renúncia fiscal pela empresa EBX, de Eike Batista, que promete investir R$ 60 milhões em um projeto polêmico de conexão da lagoa com o mar por meio de grandes tubulações subterrâneas, entre outras ações.
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