Jornalismo de Reflexão

Kaká Werá: O que o xamanismo nos ensina

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Por Morris Kachani
 

"Os seres que habitam na natureza não são só os animais. Eventualmente, os seres humanos, mas há outras inteligências, outras entidades que também participam dessa vida, dessa comunidade chamada natureza. São os espíritos da natureza, os seres encantados, como nós falamos aqui no Brasil".

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"O xamanismo ajuda o ser humano na purificação da sua psique, dos seus estados emocionais e dos seus centros vitais. Então, nesse sentido, também cura".

Em que medida os saberes ancestrais e a cosmologia dos povos originários se entrelaçam com o campo da psicologia e contribuem com o conhecimento contemporâneo ligado à questão da saúde de um modo mais integral - saúde do corpo, saúde da mente, saúde espiritual?

Este é o tema desta entrevista com Kaká Werá, indígena de origem tapuia, escritor, ambientalista, empreendedor social da rede Ashoka e conselheiro da Bovespa Social & Ambiental.

Considerado um dos precursores da literatura indígena no Brasil, Kaká já viajou, palestrou e liderou oficinas de imersão e autodesenvolvimento em diversas empresas e países como Inglaterra, EUA, Israel, Índia, México e França.

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"O que a sociedade não indígena chama de psique, nós chamamos de alma. Tradicionalmente a sabedoria dos pajés está muito ligada a uma questão espiritual. Existem os conhecimentos tradicionais, que podem se relacionar com o oferecimento de um equilíbrio para a psique, para a alma. Mas não se pode confundir espiritualidade com religião. As culturas ancestrais, elas não são, na verdade, religiosas. Para além da religiosidade, essas culturas falam de um lugar onde o ser humano é desafiado ou é convidado a desenvolver um determinado padrão de relacionamento baseado em valores, baseado em uma ética e uma moral para se aproximar ou se conectar com Deus.

Assista à entrevista

A espiritualidade, no caso da tradição indígena, ela é focada em oportunizar a pessoa a vivenciar uma experiência sagrada. E é diferente você vivenciar uma experiência do sagrado com o sagrado da religiosidade propriamente dita. Para se vivenciar uma experiência com o sagrado, inevitavelmente isso passa pela psique, pela alma.

Existem alguns pontos que nos conectam, que nos unem enquanto sabedoria ancestral, e um desses pontos é talvez o princípio da nossa filiação à Terra. E esse é um ponto que todos convergem, que é a ideia, a visão de mundo de que o ser humano vem da Terra Mãe, não como uma metáfora de crenças, mas como realmente um princípio de sabedoria baseada em toda uma experiência milenar.

Então eu acho que uma das coisas que caracteriza os saberes ancestrais é esse princípio da filiação à Terra Grande. E você vai ver isso não só nos povos do Brasil, mas nos povos da América Central, da América do Norte. Isso nos irmana mais.

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O segundo aspecto peculiar a uma sabedoria ancestral diz respeito a que, uma vez que nós somos filhos da Terra, então há um reconhecimento de que a natureza é um campo, um lugar onde há outras inteligências e expressões de vida a serem consideradas tanto quanto as inteligências humanas. E tem um terceiro ponto que eu julgo importante trazer aqui, que é a questão do cultivo à ancestralidade. É um ponto importante, porque a sociedade não indígena, ela até reconhece a importância de cultivar, de ter uma relação saudável com os seus antepassados e a sua família.

Já a sociedade indígena considera ancestral somente o seu grupo consanguíneo, não a sua família consanguínea. Nós consideramos como ancestrais também os seres da natureza e os animais, as montanhas, as árvores, os rios. Muita gente às vezes acolhe isso até como uma metáfora, mas todos os seres que são emanados da Terra são nossos ancestrais.

Eles também fazem parte de nós e a gente não consegue viver sem eles. Sem a presença dos animais, nós morreríamos de uma grande solidão de espírito.

São os nossos ancestrais, os bichos da floresta, e anterior aos bichos da floresta, uma nascente, uma cachoeira que passa por ali. Então, esses são alguns pontos que vêm de uma sabedoria ancestral, que é comum a toda essa diversidade étnica que você vê ainda presente hoje no Brasil e fora do Brasil.

O Xamanismo é um conceito que veio adquirindo uma determinada propriedade, que enlaça culturas ancestrais e a psicologia. Ao longo de algumas décadas, mais precisamente desde a década de 40.

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Essa história de xamanismo começou fora do Brasil, com um grupo de pessoas ligadas à psicologia e ligadas também à antropologia, sociologia, pessoas que são cientistas, acadêmicos, estudiosos, que num determinado momento entenderam que eles tinham que olhar para trás, para as culturas nativas, nas suas regiões na Europa.

O termo foi tecido a partir de um grupo que se reunia para estudar isso, entre eles um sujeito chamado Mircea Eliade, que lançou o livro "Xamanismo A Arte do Êxtase", entre os anos 40 e 50.

Só que nos anos 60, o xamanismo ganhou um aspecto de experiência por causa dessa questão psicodélica, por causa das experimentações, do cogumelo, do cacto, das plantas de poder. E ele ganhou essa dimensão de experiência psíquica de uma maneira assim histórica.

Mais no final dos anos 80 para os anos 90, a psicologia de novo toma esse tema por causa de todo o envolvimento que existe entre a consciência e o xamanismo. Para compreender melhor esses processos, então a psicologia toma de novo e reconecta justamente com o Jung, a princípio.

Então o xamanismo é essa complexidade. Tem sido muito proliferado, vamos dizer assim, pela conexão de determinados grupos de jovens com as culturas amazônicas. O xamanismo no Brasil tem aflorado e trazido essa dimensão da experimentação das ferramentas para obter com isso, expansão de consciência.

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Mas na tradição tupi guarani há um outro tipo de xamanismo que não faz uso de plantas de poder, essas coisas todas. Os pajés, no xamanismo tupi guarani, fazem uso de ferramentas muito mais próximas das sabedorias orientais do que das plantas de poder, porque envolve meditação, cantos e danças.

O foco da sabedoria xamânica é a expansão da consciência e a integração das partes que compõem o ser. É uma experiência de autoconhecimento e de conexão.

Ajuda o ser humano nessa purificação da sua psique, dos seus estados emocionais e dos seus centros vitais. Então, nesse sentido, também cura. O xamanismo também é cura nesses termos, mas não é esse o propósito. Os saberes ancestrais, a cosmologia, mesmo o xamanismo, a própria mente, são ferramentas poderosas para eu conseguir assim me melhorar e aprofundar o meu eu. Minha última mensagem é para as crianças. Não percam seu amor próprio e seu poder maravilhoso de ousar através da imaginação!".

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