Por Artur Voltolini
Em março de 2014 Paulo Sergio ainda morava em sua maloca debaixo do viaduto Presidente João Goulart, na praça Marechal Deodoro. Apaixonado por cantar pagode, era chamado pelos outros 11 amigos com quem dividia o espaço de "Dig Dig", por causa da música "Somente Você", do Raça Negra [Dig, dig, dig iê...]. Sua maloca era aberta, tendo como teto o concreto do Minhocão. Paulo diz que era uma maloca "chique na alimentação", pedestres de passagem diziam que Paulo e seus companheiros ali comiam melhor do que eles em suas casas. O prato que ele mais gostava de cozinhar era macarronada. Ele diz que apesar de tentar manter o asseio limpando esporadicamente a calçada em que morava, as coisas que ele mais detestava fazer eram tirar a barba e tomar banho: "Pra que, se no dia seguinte eu ia me meter sujo de novo?", questiona.
No fim de uma tarde do mesmo mês Soninha chegou na maloca e começou a conversar com seus amigos. Paulo, bêbado como sempre, observava. Até poucos meses atrás, assim que Soninha começou a frequentar sua maloca com mais dois amigos, dando lanches e ouvindo suas histórias, Paulo não gostava dela, e a chamava de "baixinha sapatão e folgada". Com o tempo esse sentimento foi se transformando em afeição, e Paulo começou a desconfiar de que ele era mútuo. Neste dia Soninha ficou pouco, pareceu estar com pressa. Pediu a Paulo que a acompanhasse até o ponto de ônibus. Ele estranhou, já que o ponto era relativamente perto e ela nunca tinha pedido companhia a ninguém antes. Lá eles se abraçaram, e Paulo pediu um selinho para Soninha, que retribuiu. "Ela chegou na maloca e eu lá, todo feio, com barba grande, falhada, e preta. Mais preta ainda por causa da poeira dos ônibus, de dormir na calçada". Paulo passou a noite toda pensando nela, sem imaginar que havia beijado a [ex] futura secretária de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo e ex-VJ da MTV.
Paulo Sergio Rodrigues Martins, 42, nascido em Primeiro de Maio, no Paraná, só conversou com Inconsciente Coletivo a pedido de sua companheira Soninha Francine, 49, vereadora pelo PPS, que ao ser questionada sobre os motivos de ter tornado pública a relação deles em entrevista a Morris Kachani, neste mesmo blog, afirmou não ter sido nada programado. Aconteceu de Paulo Sergio estar na frente do jornalista, e ele ter perguntado quem ele era. Assim, sem pensar, a vereadora decidiu contar sua história, e juntos, ela e Paulo Sergio, prometeram que ele daria seu depoimento sobre essa inusual história de amor. Soninha manteve a promessa e, novamente sem pensar nas consequências, ajudou a articular esta entrevista.
Foram dois encontros, o primeiro na casa em que eles moram, na Pompéia, que dividem com a filha mais nova de Soninha, Julia, de 20 anos, dois cachorros e cinco gatos, em meio a muitos livros e objetos espalhados, numa atmosfera ao mesmo tempo familiar e caótica. O segundo foi no gabinete de Soninha na Câmara dos Vereadores, enquanto ela estava no plenário. Paulo Sergio ficou pouco à vontade durante as entrevistas, principalmente quando Soninha não estava por perto. Disse não saber conversar: "Na rua a gente fala brasileiro, né? Aqui é bom dia, boa tarde, boa noite. Todo mundo educado, usando as palavras certas", disse.
Paulo tem dificuldades com datas e em recuperar eventos em sua memória, já que ficou aproximadamente vinte anos nas ruas, entre idas e vindas da casa da mãe, e sempre bebendo muito: "Não sei o quanto eu bebia, eu não contava. Ficava nessa vida: acordava com pinga, dormia com pinga, não comia nem dormia direito". Não se lembra, por exemplo, da sua primeira noite na rua, embora lembre a primeira vez em que bebeu álcool na vida: aos 17 anos, em um pagode com seus primos mais velhos, que já usavam cocaína. Morar na rua foi algo gradual. Começou a sair para beber e usar drogas na sexta-feira e só voltava na segunda para a casa da mãe em São Mateus. Quando ele chegava em casa muito mal sua mãe não o deixava entrar. Acabou não voltando mais e fazendo parte do grupo de mais 16 mil pessoas que vivem nas ruas de São Paulo.
Paulo já morou em diversas malocas espalhadas pela cidade. Na última em que morou, antes de ir para a praça Marechal Deodoro, era chamado de "Vovô", já que cuidava de guardar documentos e até mesmo de administrar os remédios controlados de seus colegas. "Teve até o Piauí, que pegava a bolsa dele, com o cartão do banco e a senha dentro, e dava pra eu guardar, se não ele perdia. No dia certo eu dizia pra ele ir lá sacar o dinheiro, e a gente com dinheiro na mão não sabia o que fazer, só queria saber de cachaça". Paulo, assim como grande parte das pessoas em situação de rua, não gosta dos albergues, seja por causa das filas, seja por causa das regras de horários, ou por causa da impessoalidade e da restrição da autonomia, sem falar nos furtos.
Perguntado se teve uma infância pobre, Paulo disse: "Não, minha mãe trabalhava. Mas ninguém é rico nesse mundo". Contou ter duas irmãs vivas, e teve quatro irmãos que já morreram. Tem dois filhos, com 17 e 18 anos, do seu último relacionamento antes do atual, e voltou a vê-los com mais frequência depois de sua reabilitação. Paulo não quis se alongar sobre suas relações familiares. Aos 13 anos sua mãe o inscreveu em um Centro de Apoio ao Menor Patrulheiro (CAMP), no Largo do Cambuci, em frente à casa da avó de Soninha, que na época tinha 18 anos. Ele conseguiu emprego como empacotador de supermercado e virou, aos 14, encarregado de seção.
Durante seus 20 anos de rua fez bicos esporádicos em obras. Não gosta de falar sobre seu passado, sobre seu pai que já faleceu, nem sobre as coisas ruins que fez e que viu enquanto morava na rua, apesar de ter contado que já viu vários amigos morrerem de frio, e também a história sobre um grande amigo que morreu em seus braços, depois de ser esfaqueado em decorrência de uma dívida de drogas: "Ele estava com os olhos parados e a boca bem aberta, com uma cara de assustado, então coloquei o ouvido em sua boca pra ver ser ele respirava e senti um ar. O último suspiro dele quem escutou fui eu".
Paulo divide o mundo entre o lado de dentro e o lado de fora. Ele afirma que as pessoas que moram do lado de fora têm uma grande lição a ensinar para os do lado de dentro: serem mais solidárias a aprenderem a dividir suas coisas com os outros. Sua passagem para o outro lado se deu quando conheceu Soninha: "No início, ela fazia cada pergunta boba, parecidas com essas que você está fazendo pra mim agora. Não gosto de falar sobre minha vida".
Depois da cena do beijo no Minhocão, eles começaram a namorar escondidos, passaram três meses namorando no carro. "Coisa de adolescente", disse Paulo. Até que Soninha decidiu levá-lo para sua casa. A relação era conturbada, atrapalhada pelo consumo excessivo de álcool de Paulo: "Todo dia tinha briga, eu chegava chapado, chegava bêbado, fazia discussão. Não cheguei a agredir fisicamente, mas de falar palavras, de falar abobrinhas. Aí no dia seguinte, com dor de cabeça, eu me arrependia".
Soninha lutou desde o começo para que Paulo Sergio parasse de beber. Foram três anos de tentativas e recaídas. Paulo já tinha tentado internação, tinha ido ao CAPS-AD (Centre de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas) e começado tratamento com remédios: "Internar não é pra mim, não vira. Eu fui num CAPS, peguei um monte de remédio. Mas tomar remédio é a mesma coisa que nada. Aqui na esquina tem um barzinho, eu ia tomar remédio e cachaça ao mesmo tempo".
Paulo tinha sérias crises de enxaqueca, às vezes por beber demais, às vezes em consequência da abstinência. Chegava a ter convulsões. Depois de três anos de um relacionamento difícil, sofrendo pressão de familiares e amigos, com as brigas e as recaídas constantes de Paulo, Soninha chegou a seu limite. No começo deste ano Soninha terminou com Paulo, e chegou a proibir que ele a visitasse em seu gabinete na Secretaria.
"Eu não estava mais querendo saber daquela vida, na rua você vê cada coisa. Mas tinha um barulho na minha mente, tomava uma pra esquecer. Era a mesma rotina, enchendo a cara de cachaça, e não saía daquilo. Ela lutou pra eu parar de beber, mas não deu certo. Ela gostava de mim, dizia: 'Mesmo ele estando longe de mim ele tem que parar de beber, aquele cara é muito inteligente'".
Foi então que entrou em ação Adriano Marques de Camargo, educador social e amigo do casal, funcionário da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania que trabalha com população em situação de rua. Adriano levou Paulo para tomar o chá de ayahuasca num sítio em São José do Rio Preto, do grupo Mentes Livres, que faz tratamento terapêutico especializado em dependência química: "É muito gostoso, é muito bom. A coisa mais importante e mais impressionante de tudo de bom que aconteceu na minha vida é esse chá".
A ayahuasca é uma bebida produzida a partir de plantas e cipós, historicamente utilizada para fins religiosos e medicinais por povos amazônicos, que leva a um estado de consciência alterada e pode causar vômitos e alucinações. Paulo Sergio não sentiu os efeitos do chá na primeira vez que tomou, mas se sentiu mais aliviado. Voltou para Soninha e começou a tomar os remédios para abstinência.
Nesse ínterim começou a fazer um curso de corte de cabelo com máquina: "Mas não ia dar certo pra mim, eu saía do curso e embaixo tinha um bar. Descia e tomava uma pinga na hora do lanche, outra na hora de ir pra casa", conta. Adriano intercedeu e combinou com Paulo dele passar uma semana fazendo tratamento com o chá de ayahuasca num sítio do Mentes Livres em Juquitiba: "Conheci o Adriano antes de conhecer a Soninha, ele também tinha esses probleminhas... Ele conheceu o chá antes do que eu, e deu certo pra ele. Eu vi nele que funcionava". Paulo tinha receios de não conseguir ficar uma semana sem beber.
Adriano, que chegaria de manhã para levá-lo ao sítio, só chegou na hora do almoço. Paulo Sergio aproveitou e foi pro bar tomar uma pinga, no mesmo dia em que iria começar a se tratar. "Nós fomos de carro, e quando chegamos lá eu disse que não queria ficar só uma semana, queria ficar um mês inteiro. No primeiro fim de semana fizemos uma vivência [ritual de tomar o chá de ayahuasca e depois dividir as experiências]. Foi muito boa. No final eu expliquei que eu me vi no fundo do poço, que me vi afundando".
"Ao longo do mês eu fui tomando o chá, e ele foi mostrando as coisas mais ainda. Eu tentava vomitar o mal que tinha em mim e não saía nada. Eu via as coisas erradas que tinha feito. Na última semana o Diego Dias, um psicólogo super experiente que trabalha lá, me deu o chá na minha última vivência e ficou olhando para mim. Aquele dia eu vi o tanto de coisa de errada que eu fiz, chorei igual uma criança, vomitei mais de vinte vezes, suei, levantei, empurrava as árvores em volta de mim. O Diego chegou perto e eu o empurrei. Ele me pediu calma, e eu disse: 'Não quero coisa ruim perto de mim'".
Diego havia trazido um copo d'água para acalmar Paulo Sergio, mas ele confundiu com pinga e lhe pediu: 'Tira essa pinga de perto de mim'. Diego então disse a Paulo Sergio que se ele não quisesse as pingas, que as jogasse na fogueira. Paulo jogou a água que estava em seu copo no fogo, e saiu jogando tudo que se parecesse com pinga na fogueira.
Quando o ritual acabou Paulo disse que havia perdido totalmente a vontade de beber. E faz mais de quatro meses que ele não tem uma recaída. Diz que hoje entra em bar "como se fosse numa igreja" e pede tranquilamente apenas um café, que frequenta festas que têm álcool e não bebe nada, "nem cerveja". Os voluntários do Mentes livres recomendam que se faça uma "manutenção" com o chá de 15 em 15 dias, o que hoje Paulo Sergio faz acompanhado de Soninha, que experimentou há pouco, e com muito medo, o chá pela primeira vez. "Tô aqui, graças a Deus, livre da cachaça. Eu o recomendo às pessoas e às famílias com problemas de alcoolismo, com problemas de drogas. Falo do meu coração, procura esse chá que não tem coisa melhor. Falo pra todo mundo, se for com fé, melhora. Tenho um primo que está se tratando e está parando usar", afirma.
Das ruas hoje Paulo sente falta apenas dos amigos e dos pagodes que fazia com eles nas malocas da cidade: "Eu sobrevivi à rua. Tem pessoas que não aguentariam o que eu passei, não. Eu usei um pouco de crack, mas isso não foi um problema, não curto muito não, então não cheguei a ser muito viciadão", disse.
Questionado sobre como ficaria sua vida se ele se separasse de Soninha, Paulo Sergio respirou, olhou para o centro de São Paulo pela janela do gabinete e respondeu: "Difícil... Eu consigo imaginar, sabe como? Lá pra fora [e aponta para a janela]. São Paulo é grande. Sem ela eu não sei... Vou tentar ficar do jeito que eu estou, sem fazer mais cagadas na vida, já fiz muita besteira. Posso ficar na rua, mas de um jeito diferente. Vou procurar não dormir no meio da calçada, procurar coisas melhores pra mim. Se eu separar da Soninha não vou voltar pro álcool, não vou ficar jogado", afirma.
Sua rotina hoje é dividida em acompanhar a vereadora Soninha em seus afazeres e fazer alguns trabalhos de pedreiro na casa de conhecidos dela. Os 20 anos de uma vida resumida ao imediatismo de conseguir a próxima dose, ou o próximo prato de comida, talvez dificultem a criação de planos e a definição de metas de médio e longo prazo em sua vida. Sobre seus sonhos para o futuro hesitou em responder, mas acabou por afirmar: "Meu sonho é trabalhar e construir uma família, ficar sossegado com a Soninha. Quero progredir, tô planejando voltar a estudar. Quero voltar para a minha vida que eu perdi. Voltar atrás e fazer um outro livro, esquecer aquele caderno feio e fazer tudo de novo. Meu passado eu não quero mais não".
Paulo gosta de acompanhar os debates no plenário da Câmara, embora admita que não entende quase nada do que é dito: "eu nem sei o que é que ela faz aqui", diz rindo. Ao final do segundo encontro Paulo Sergio acompanhou o repórter até o hall do elevador, e se dirigiu até a grande janela que dá para o viaduto Jaceguai, na frente do prédio da Câmara. Paulo apontou para ele e disse: "Há uns dez anos eu dormia ali, jogado na frente daquela mureta branca. Nunca imaginei que um dia entraria neste prédio".
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