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Jornalismo de Reflexão

'Se põe a vida de outros em risco, não pode ter pitbull no Brasil', diz escritora que foi atacada

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Por Morris Kachani
 

Três meses após ter sido brutalmente atacada por três pitbulls, a escritora e poeta Roseana Murray acaba de lançar uma série de poemas inspirada na tragédia, celebrando a vida. 

Em entrevista a este blog, Roseana propõe a esterilização da raça, enquanto encara com muita fisioterapia e medicação a dor fantasma do braço que se foi, e aguarda ansiosamente pela chegada de uma prótese.

*

A Morte sobre meu corpo não conseguiu me levar.

Talvez pesasse muito a minha chave da poesia, a que carrego sempre no pescoço. 

Talvez um anjo tenha soprado na sua cara. 

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Fiquei ali, na rua, abraçada com as pedras até que viessem me buscar.

Assim se inicia a recém-lançada série de poemas da escritora e poeta Roseana Murray, sobre o tempo em que ela esteve internada na CTI do Hospital São Gonçalo, recuperando-se de uma tragédia que quase lhe custou a vida. 

A série está disponível de forma gratuita em seu site; alguns dos poemas aparecem distribuídos ao longo deste texto.

No dia 5 de abril, por volta das 5:45 da manhã, Roseana se preparava para se exercitar na  academia de seu bairro, Gravatá, no município praiano de Saquarema, no Rio de Janeiro. Quando saiu de casa, percebeu que os três pitbulls do vizinho estavam soltos, na rua. Pior, estavam famintos, como se viria a constatar depois.

Apesar dos latidos ameaçadores a que se habituara a escutar quando, a salvo, passava pela porteira do vizinho, com os cães enclausurados, Roseana decidiu se arriscar e seguiu o passo.

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Em um instante, os três cães avançaram sobre a escritora e a derrubaram no chão, com a intenção clara de matá-la. Roseana perdeu o braço direito, teve a orelha direita triturada e recebeu mais de 300 pontos. 

Os cães chegaram na beirada de seu olho. Arrancaram a artéria para fora do braço. E a feriram muito nas pernas e no rosto. 

Mas não conseguiram atacar sua cabeça nem alcançaram a jugular. 

Roseana perdeu muito sangue. Foram 3 cirurgias - para amputação do braço, reconstituição da orelha direita e tratamento de feridas várias, em 20 dias de internação. 

 

Atualmente, Roseana pratica em casa duas sessões de fisioterapia semanais, duas sessões de terapia ocupacional, e está retomando o pilates. Toma 4 comprimidos de gabepentina por dia, um medicamento de tarja vermelha para dores neupáticas, e comprimido para dormir.

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"Quando eu abri o portão da casa, eles estavam na calçada. Aí eu entrei de novo para pensar se eu saía ou não. Mas eu estava muito feliz. Achei que eles iam latir, mas não fariam nada. Só que imediatamente ao me ver, eles me derrubaram. Eram três, né? Me derrubaram atacando mesmo. E a rua estava vazia, não tinha ninguém. Eu gritava por socorro e falava, 'eu vou morrer'. Eles me mordiam muito", relembra a escritora, em entrevista a este blog.

"Eles me atacaram assim, de cara, com uma ferocidade para matar. Não dava para eu escapar. Eu tentei muito. Eram três pitbulls em cima de mim. Eu tentava me arrastar, mas não dava. Não dava. Até que chegou um maratonista, o Eduardo, e conseguiu tirar os cachorros de cima de mim. Lembro que no chão e eu queria levantar a mão direita, mas não conseguia porque ela estava esmigalhada".

"Eduardo falou que arrumou um cabo de vassoura não sei como, começou a bater nos cachorros, e eles voaram para cima dele. Daí ele pulou o muro da minha casa, e depois eu não sei direito como foi, sei que veio junto com ele um carro, o cara tinha um facão e deu uma facada, mas de leve, num dos cachorros - e todos entraram para casa. Esses são os relatos que eu tive. Eu não estava vendo absolutamente nada. Já tinha gente na rua, mas ninguém tinha coragem de tirar os cachorros de cima de mim".

E os donos? "Estavam em casa, só saíram muito depois".

 

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O quarto não tinha janelas. Na primeira noite tive alucinações.

Foi um sono sem sonhos. Uma longa noite.

Os cirurgiões cortaram, abriram, fecharam. 

As horas galoparam sobre mim sem que eu nada sentisse. 

Quando acordei, meu braço direito havia desaparecido.

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O braço estampado com a tatuagem de um ramo sinuoso de flores, com o qual escreveu seus mais de 50 livros, que lhe renderam alguns prêmios importantes de literatura infantil e juvenil, como Jabuti e APCA.

Reaprender a viver sem ele, se transformou na principal tarefa.

Aprendo a escrever com a mão esquerda. Viro criança outra vez. 

Rabisco palavras, risco o tempo, a casa da infância existe, equilibrada no balanço da memória. 

"Eu perdi um braço. Então você tem que reaprender a vida com um único braço, né? Não é impossível. Já faço quase tudo. Mas tem coisas que eu não posso fazer. Não consigo dar um laço, um nó em alguma coisa. Coisas pequenas assim que eu não posso fazer ainda. Mas eu posso cozinhar. Se alguém cortar tudo para mim, eu posso cozinhar. É um feito. Então, cada vez eu vou ficando mais independente".

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O braço direito não existe mais, mas pensa que existe e é uma existência sombria de choques e dor, como um fantasma que afiasse as facas na cozinha.

No momento, Roseana está enfrentando a síndrome do braço fantasma. É como se ele ainda estivesse presente, ocasionando dores indescritíveis de formigamento, choque, agulhada ou queimação. A síndrome consiste na percepção de um membro que foi perdido. É uma condição neurofisiológica, onde a parte amputada desmembra-se do corpo, porém não do cérebro. 

"Quando estava na CTI, logo que eu senti a primeira vez, parecia que tinha um objeto cortante na minha mão. Eu comecei a gritar para tirarem aquele objeto da minha mão e eu sabia como era o objeto. Olha a loucura".

"É muito, muito difícil passar por isso. Mas agora eu já tenho isso mais ou menos sob controle. Assim, às 16h00, 17h00, eu começo a sentir fortemente. Mas eu já consigo não sucumbir a essas dores. Elas estão aí".

O sonho de Roseana é ganhar uma prótese. 

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"Estou me preparando numa clínica de reabilitação para botar a prótese que me foi prometida pela Prefeitura de Saquarema. É muito cara e eu acho que vai me ajudar muito, porque aí pelo menos você tem um apoio. Lá na clínica de reabilitação me disseram que a prótese ajuda muito a enganar o cérebro. Vamos ver. Talvez esses exercícios neurológicos, que eu faço com espelho, nas sessões de fisioterapia, comecem a me ajudar. Se não tem que esperar, não tem saída".

Os exercícios consistem em movimentos alternados da mão esquerda em frente a um espelho. Em uma segunda rodada, Roseana repete os mesmos movimentos com a mão esquerda, porém de olhos fechados, imaginando que a direita também está em ação.

 

Não obstante a dor e o sofrimento, chama a atenção a reação de Roseana à tragédia. Como nomeá-la? "Não me vejo lesada em nada da minha saúde mental e emocional", diz a escritora.

Antes da tragédia com os pitbulls, Roseana já havia passado por duas delicadas cirurgias da coluna. A elas, e a sua origem judaica, a autora de 73 anos atribui um determinado estado de espírito associado à resistência. 

 

Sou uma mulher antiga. Brasileira, mas também eslava. Judia e pacifista, e sem ter ido à guerra, a quem agora falta um braço.

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"Eu tenho prótese de titânio nos dois quadris. Eu aguentei muita dor. E eu acho que quando eu tive que aguentar a perda de um braço, eu estava preparada. Não adianta chorar pelo que não se tem. 

A idade serve para isso, né? Para você realmente fazer as suas escolhas. Se você escolher ficar arrasada, pelas perdas que você tem, não funciona... O Freud já falou que a velhice é um luto, né? Você vai perdendo".

"Olha, eu não sou heroína. Muitas pessoas sofreram acidentes terríveis e continuaram suas vidas do jeito que puderam. Eu sempre vivi em estado de poesia, buscando o que é belo, o que é bom e buscando jeitos de sair de uma situação muito opressora. E isso me ajudou. Então é isso, você busca o que pode, não o que não pode".  

"Eu me vejo igual. Quando eu soube que eu perdi um braço, dei uma afundada. Mas aí eu pensei, ah, vou escrever um livro para criança. Vou fazer desse braço que não existe mais um braço mágico para as crianças. E o livro está pronto, vai sair no mês quem vem".

"Então eu vou sempre buscando saídas, rotas de fuga para situações que são muito difíceis. Lembrando que eu sou judia de primeira geração no Brasil, então a gente tem um esqueleto, né? Transmitido. Eu nunca passei por algo semelhante, mas parece que eu já estava preparada para alguma coisa ruim. Eu me sinto assim, preparada para essas coisas. 

Aliás, a gente. Eu gosto de muita coisa no judaísmo. Não estou falando do Estado de Israel, mas, por exemplo, do universo onírico de Marc Chagall. Meus pais vieram da Polônia na década de 20, já fugindo do antissemitismo, e essa vivência deles teve um impacto no meu inconsciente. Eu tenho um fluxo muito bom do inconsciente para a consciência, porque eu sou poeta e o meu inconsciente me dá belas imagens. Por isso amo o Chagall. Ele colocava no céu as casas, tudo com muito céu e a minha poesia é muito cheia de céu. Sempre fui muito forte. Muito forte para aguentar muita dor". 

Apesar da negligência e das desculpas tardias, instintos como a vingança ou a punição, com relação aos responsáveis pelos pitbulls, inexistem, para Roseana. 

"Que destino deveria ser dado aos proprietários? Não me interessa. Absolutamente. Não me compete. Não posso fazer nada a respeito. Eu aprendi que a gente não pega pra gente, o que não é da gente. O destino deles não me pertence. Posso fazer o que fiz. Eu não quis colocar uma queixa contra eles. Fui obrigada a fazer corpo de delito, o que é ruim para eles, porque eles são réus. Mas eu não fiz queixa nenhuma".

"Eles agora são réus, não por mim, mas pelos maus tratos com os cachorros, que foram para o abrigo municipal. Foi detectado que eles estavam com muita fome, e desnutridos. Aí, algum tempo depois, o meu vizinho veio me pedir desculpas. Não sabia como me pedir desculpas. E eles não são os donos da casa. Também não alugam a casa. Era uma casa abandonada. Então a casa foi desapropriada pela prefeitura e o processo está correndo. Eu imagino que ele vá ter que sair da casa. É uma casa muito abandonada e eles não têm dinheiro".

Com relação aos cães propriamente, Roseana defende a esterilização dos pitbulls no Brasil.

A raça possui restrições em cerca de 24 países como Reino Unido, Espanha, Rússia, Argentina, Itália e Nova Zelândia. Entre os países que regulam a adoção desses cães estão os Estados Unidos, Austrália, Alemanha, Japão e Brasil.

Aqui, a lei determina que animais das raças pitbull, fila, doberman e rotweiller só podem circular por locais públicos - como ruas, praças, jardins e parques -, sendo conduzidos por maiores de 18 anos, usando guias e focinheira apropriados. No ano passado, o Brasil registrou no SUS 1.278 internações por ataques ou mordidas de cães

"Tem relatos de pitbulls que matam o dono. Então, acho que não é uma raça que deva existir. Ela deveria ser pouco a pouco esterilizada no Brasil, porque existem leis para regular o perigo desses cães. Mas você sabe, o Brasil é um país muito pródigo em leis, tem milhares de leis, mas não são obedecidas porque no Brasil não tem punição". 

"Então ninguém anda com focinheira, solta o cachorro na praia, um pitbull solto, um pitbull na praça ou na própria rua, entende? Então não pode ter. Se você coloca a vida de outras pessoas em risco com essa fera, não pode ter pitbull no Brasil. É minha opinião". 

Partimos para a parte final da conversa e o inevitável paralelo com a obra autobiográfica "Escute as Feras" (editora 34), de Nastassja Martin, na qual a antropóloga francesa relata sua experiência de ter sido atacada por um urso durante uma pesquisa de campo na região de Kamtchátka, na Sibéria. O incidente ocorreu em 2015, e Martin descreve o evento não como um ataque, mas como um encontro transformador, no qual ela se torna "miêdka," um termo do idioma even para alguém que sobreviveu a um encontro com um urso e, a partir daí, é visto como metade humano, metade urso.

"Eu também me sinto meio humana meio mulher selvagem, porque venci. Ela viu a boca do urso. Sente o cheiro do urso, o cheiro da fera. E ela sai como uma mulher-urso para os habitantes locais. Uma espécie de maldição, porque ela fica com poderes de urso e isso não era bem-vindo. Ela entra num outro território. 

O que ficou para mim desse livro foi a desatenção dela. Ela estava descendo sozinha a montanha. Ela deixou os companheiros lá em cima, perto do vulcão, e começou a descer porque ela já não aguentava o falatório deles. E então ela não estava prestando atenção porque estava muito alegre e feliz. Foi descendo, descendo, descendo e se deparou com um urso. 

Eu também fui muito, muito desatenta, porque eu não fiz uma varredura do que podia acontecer. Eu simplesmente pensei: eles não irão me atacar. Não foi uma surpresa. Eles estavam lá. Foi diferente do encontro dela. Mas eu acho que três pitbulls equivalem a um urso em termos de força da mordedura, né?". 

Contudo existe uma dessemelhança clara entre as experiências vividas por Nastassja e Roseana, no que diz respeito ao tratamento recebido nos hospitais. Enquanto a autora francesa retrata um verdadeiro calvário composto de lugares-comuns no seu processo de recuperação, tais como a desumanização, o foco excessivo na cura física, o isolamento e a alienação, Roseana se sente inundada de um "tsunami de amor" vindo não apenas da família e das milhares de manifestações de apoio recebidas publicamente e nas redes sociais, como também e sobretudo pelo tratamento recebido no hospital público de São Gonçalo.

"Um hospital de ponta maravilhoso. Considerado um dos melhores para trauma no Rio de Janeiro. Tudo funcionou maravilhosamente bem, com uma equipe médica de primeiríssima".

"As enfermeiras que me faziam um curativo eram tão amorosas, magníficas. Era uma onda de amor. Eu sempre fui uma pessoa que viveu em estado de poesia. Então, quando eu comecei a poder sair para dar uns passos, a fisioterapeuta me levou no jardim e a gente sentava embaixo de uma mangueira. Aquilo para mim era o suprassumo, né?".

"Esse foi um efeito colateral do meu acidente. Poder receber esse amor, e dar". 

"Eu fui bem reconstruída. Eu acho até que o pessoal da plástica me deu um up. Só fiquei com as cicatrizes. Talvez desapareçam um dia, mas se não, não me incomoda. Sou a noiva do Frankenstein toda furadinha".

Antes da despedida, pergunto a Roseana se tem alguma consideração final, alguma mensagem a transmitir a partir do legado de sua experiência:

"Se eu quero deixar alguma mensagem, é para que as pessoas façam algum exercício físico como caderneta de poupança. Sou uma pessoa muito saudável, que tinha algum preparo físico e isso me ajudou. As caminhadas, o pilates, tudo isso me deixou em vantagem". 

Na verdade, com dor ou sem, vou vestida com as cores de quem enganou a Morte: Vou com as cores radiantes da vida.

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