
Em 1918, Freud fez um discurso muito famoso pós Primeira Guerra Mundial, onde incentiva a criação das clínicas públicas, dizendo que o pobre tem tanto direito quanto o rico ao atendimento de saúde mental.
No Brasil, a história das clínicas públicas passou por alguns ciclos de efervescência. O último deles, pode-se dizer assim, se deu como reação à emergência de Jair Bolsonaro ao poder, em 2018, quando nascem muitos coletivos e grupos fazendo clínica pública, como o "Perifa Análise", o "Escuta Assédios", "Casa de Marias", entre outras.
Mas no que consistem as clínicas públicas, e quais os desafios?
O legado do projeto Territórios Clínicos, da Fundação Tide Setubal, traz algumas respostas.
O projeto visa desenvolver e fomentar propostas que promovam a circulação e a ampliação dessa prática nos diversos territórios periféricos, sobretudo em âmbito psicanalítico, como forma de democratizar e descentralizar a produção de conhecimento e o atendimento psíquico.
Assista à entrevista completa: https://youtu.be/8liZTm6MNFk
Conta também com uma linha de fomento por meio da qual são apoiados projetos, pesquisas teóricas, grupos, iniciativas e coletivos atuantes.
Tide Setubal, é psicóloga e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Mestre pela Université Paris V. Coordenadora do projeto Territórios Clínicos e Conselheira da fundação Tide Setubal.
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"Em 2017 fui pesquisar o que as fundações, ONGs e institutos estavam fazendo na área de saúde mental e acabei descobrindo que na verdade nenhuma estava investindo em saúde mental, que a maioria investia em educação e alguns poucos em saúde, mas nunca em saúde mental.
A partir de 2019, 2020, quando começamos a desenhar esse projeto, com as conversas que tivemos ficou claro que, eu sempre brinco: "não, não vamos apoiar um consultório de terapia de classe média na Vila Madalena". Não é essa a vocação do projeto, a ideia é atuar em regiões periféricas, a gente vai atuar para democratizar e descentralizar tanto a produção de conhecimento quanto o atendimento psíquico.
Fizemos esse propósito e desenhamos cinco princípios de atuação, que eram: olhar e fortalecer as clínicas públicas em relação às políticas públicas de saúde mental, entendendo sempre que as políticas públicas e o SUS são sempre os mais importantes. Depois democratizar e descentralizar a produção de conhecimento e os atendimentos, e a questão da formação do psicanalista, do psicólogo - porque como psicanalista eu sei que a formação é longa e cara e muita gente acaba desistindo. Em quarto olhar as questões de saúde mental na periferia e em quinto olhar esse campo de investimento social privado e fomentar inciativas dentro do debate de saúde mental.
Não importa se eu nasci na zona leste, numa periferia, se eu nasci no centro, ou se eu nasci na Zona Sul. O que é esse território onde eu vivo? Como que se dão as relações ali? O que ele oferece de equipamentos públicos?
Quando a gente vai pensar numa prática do território, algo que a gente tem que tomar muito cuidado é justamente para não ter esta posição de colonizador, de ir lá um branco com todo seu conhecimento, achar que vai trazer todas as verdades para aquele território. Então, eu gosto de pensar muito a questão da descolonização. A gente chega com os nossos saberes e dizendo todas as verdades do mundo ou a gente chega escutando aquele lugar, fazendo uma escuta?
As questões de raça e gênero atravessam a essência do projeto. Porque se a gente está falando de democratizar, de descentralizar, a gente vai necessariamente pensar em classe, raça e gênero.
A gente vai pensar a clínica como uma clínica ampliada. Então ela pode acontecer na rua, ela pode acontecer num espaço público, ela pode acontecer dentro da Casa de Marias, dentro do galpão ZL, onde a Fundação tem uma atuação, em São Miguel Paulista. Ela realmente é uma clínica que a gente chama de "clínica ampliada".
A gente vai pensando a clínica sem necessariamente um divã, mas contando com pressupostos psicanalíticos bastante rigorosos em alguma medida. O que quer dizer isso? Uma escuta psicanalítica que leva em consideração o inconsciente. Então, o inconsciente está sempre no centro da escuta psicanalítica, seja na rua, no equipamento público ou em qualquer outro lugar, seja no atendimento individual ou no atendimento grupal.
Outro conceito psicanalítico que vai estar sempre presente é a transferência, que é um conceito bastante central na psicanálise, onde a gente vai pensar nos diferentes espaços clínicos, a questão da pulsão e oralidade. Então, por um lado, é uma clínica que rompe as quatro paredes, essa ideia mais da psicanálise clássica, do divã e tudo. Mas, por outro lado, não é menos rigorosa. Ela tem um fazer, ela tem uma consistência teórica.
O psicanalista deve ter atenção e olhar, estudar e se formar nessa clínica ampliada que leva em conta, por exemplo, esses tensionamentos de raça, classe, gênero. Que pensa sobre isso junto com aquele sujeito que está sendo atendido e que leva isso em consideração nos atendimentos.
O que eu acho muito bonito das clínicas públicas é que elas têm uma invencibilidade, sabe? Elas têm uma possibilidade de criar, de inventar, de experimentar modos novos de fazer a clínica, que é maravilhoso.