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Amyr Klink antes da travessia atlântica a remo que o tornaria famoso

Reportagem publicada em janeiro de 1984 detalhou projeto do navegador solitário de sair da Namíbia rumo ao Brasil

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Foto do author Edmundo Leite
Atualização:
Reportagem do Jornal da Tarde de 30 de janeiro de 1984 sobre o projeto de Amyr Klink. Foto: Acervo Estadão

Após o Estadão revelar em primeira mão, em outubro de 1983, o plano de um desconhecido economista e navegador de cruzar o Oceano Atlântico sozinho num barco a remo, da Namíbia ao Brasil, em 30 janeiro de 1984 foi a fez do Jornal da Tarde mostrar o projeto de Amyr Klink aos seus leitores.

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Numa página inteira encabeçada por um diagrama do barco especialmente projetado para a travessia inédita entre a África e América do Sul, ao lado de uma pequena foto do navegador em seu escritório e duas imagens da embarcação, a reportagem de Sérgio Poroger detalhava os planos de Klink: “Eu acabo chegando ao Brasil”.

Leia a íntegra da reportagem, que após a introdução é dividida em quatro partes: A rota, o barco, a alimentação, o navegante.

Jornal da Tarde - 30 de janeiro de 1984

Reportagem do Jornal da Tarde de 30 de janeiro de 1984 sobre o projeto de Amyr Klink. Foto: Acervo Estadão

Três meses num barco a remo, cruzando o Atlântico sozinho

É o plano do paulistano Amir Khan Klink. Em abril ele inicia sua aventura. Reportagem de Sérgio Poroger

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Abril de 1984, Walvis Bay, Namíbia. A pequena embarcação a remo vai partir, afastando-se da costa africana. Em pouco tempo, a cidade ficará para trás. O seu destino: Salvador, Bahia, pela rota dos ventos alíseos de Sudeste e da corrente marítima fria de Benguela, com o barco depois tomando o rumo Noroeste, pelas correntes Equatorial Sul-Atlântica e do Brasil, que ligam a costa africana à costa do Brasil.

O economista Amir Khan Klink, paulistano de 28 anos, será o navegante solitário dessa travessia inédita no Atlântico Sul — de 1897 a 1980, houve sete travessias do Atlântico Norte, mas nunca alguém cruzou Atlântico Sul em barco a remo.

Ele procurará afastar-se rapidamente da costa, e talvez se lembre então dos seus tempos de garoto, quando lançar-se à aventura era fazer passeios bastante longos em sua primeira canoinha, que ganhou aos dez anos, feita pelas mãos caprichosas de Mané Santo, um dos maiores construtores de canoas da baía de Ilha Grande.

Olhando para as montanhas que estiver deixando para trás, Amir lembrará que já eram antigas quando chegaram ao Brasil as caravelas dos descobridores. Sentirá então estar repetindo os mesmos gestos de seus heróis aventureiros, ao iniciar essa viagem solitária. Ele acha que não sentirá medo, mas sempre poderá confortar-se pensando que cada partir pressupõe um chegar.

— E fatal: querendo ou não, começando lá eu acabo chegando ao Brasil — diz, convicto.

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A previsão é de 90 dias de viagem. Tudo está planejado para que não falte água, comida, ou mesmo preparao físico. Um terço do tempo passará remando. O resto, o barco seguirá à deriva. São sete mil quilômetros.

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Inicialmente, ele tentou fazer essa travessia em dupla com um velho companheiro remador: Herman Átila Hrdlicka, com quem foi de Santos a Parati e de Parati a Santos, em uma canoa a motor, nos anos de 78 e 79, e de Salvador a Santos, em 1980. Mas acabou concluindo, pelas experiências anteriores, que a travessia a remo em dupla tem desempenho inferior à feita sozinho.

— O lado negativo de duas pessoas se soma nas horas difíceis. O pânico de um pode contagiar o outro — explica.

A sensação de conviver tão estreitamente com os mistérios que o mar carrega sempre fascinou o economista. Ele diz que não o amedronta o fato ide ter de passar tanto tempo completamente sozinho em alto mar. Amir vai trabalhar muito durante o dia. Em uma rota transoceânica, explica não há muito tempo para monotonia. E quando anoitecer?

— Claro, as coisas ficarão bem mais difíceis. É preciso saber fazer passar as horas no Atlântico Sul. Quero ler muitos livros de poesia, de relatos náuticos e ouvir muita música, popular brasileira e clássica, que deixa a gente arrepiado. Vou também levar um livro de misericórdia, com letrinhas bem pequenininhas, sobre um assunto bem chato, para quando não tiver mais o que fazer.

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Faz questão de frisar que essa travessia não é nenhuma aventura. No início, achou um pouco ousada a idéia da viagem, mas depois, após tomar conhecimento de experiências similares no Atlântico Norte, apaixonou-se pelo projeto.

— Percebi que o maior desafio não era ter coragem ou enfrentar os riscos, mas sim o desafio técnico, de preparação e de organização. Estou, muito bem preparado psicologicamente. É muito difícil eu me alterar em situações de pânico. Tenho bastante interesse em passar um tempo prolongado no mar, em contato próximo com a natureza.

A rota

Klink participou de todas as etapas do Projeto, desde a construção do barco por uma empresa carioca até o estabelecimento da rota. Há dois anos vem estudando o sistema de correntes marítimas do Atlântico Sul, através de leituras de livros especializados. De lá para cá, conversou com outros remadores solitários, que conseguiram atravessar o Atlântico Norte.

Em 1982, Amir conheceu o francês Gerard D’Aboville, que dois anos antes passara 72 dias no Atlântico Norte. Teve uma ótima impressão de D’Aboville, que o aconselhou a fazer a travessia.

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— Ele não é nenhum aventureiro, não tinha nenhuma experiência de mar nem de remo. Simplesmente analisou todos os problemas que iria encontrar pela frente, montou toda a organização de sua viagem e, ao final, venceu todas as dificuldades.

Amir Klink explica que poderia permanecer bem menos tempo no mar se resolvesse fazer a viagem entre Natal, no Nordeste do Brasil, e a costa da Libéria, na África. Mas optou por um percurso mais longo pelo conjunto de condições mais favoráveis. Segundo ele, o percurso Walvis Bay-Salvador passa ao largo das altas latitudes, de furacões, ciclones tropicais, correntes contrárias e do perigo das rotas movimentadas.

— As condições meteorológicas e climáticas são também bastante amenas. Tudo isso acaba diminuindo as chances de surpresas e reduz os riscos da viagem — garante ele.

Mas há riscos. Existe a possibilidade, ainda que remota, de que seu barco se choque com um navio. Para evitar isso, Amir estará munido de um aparelhinho capaz de emitir ruídos que interfiram no sistema de radar de uma grande embarcação. Contará também com um detetor de radares que, em questão de minutos, pode-rá lhe indicar a aproximação de qualquer navio em sua rota.

Apesar de extremamente dóceis, as baleias também preocupam o remador. Diz que elas podem eventualmente se aproximar do barco:

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— Já aconteceu de uma baleia afundar diversos veleiros — explica Klink, acrescentando que para evitar esse tipo de eventualidade o barco foi projetado para suportar impactos violentíssimos e que as cores usadas para a pintura do fundo da embarcação (baseando-se em estudos realizados nos Estados Unidos a respeito da influência da cor sobre cetáceos) irão repelir as baleias.

A largada também pode significar um problema. Ele espera contar com o auxílio dos ventos e correntes marítimas, em abril, porque quanto mais rápido se afastar da costa maior será a sua segurança. Assim que deixar o porto africano, Amir irá lançar umas 250 garrafas ao mar, para que possa comparar o desempenho de sua travessia com a dos objetos à deriva. Ele acredita que mais de uma dúzia dessas garrafas alcançará a costa brasileira em alguns meses.

— Só não sei em quanto tempo. Andei estudando as bóias de pesqueiros africanos que chegaram aqui depois de uns 200 dias.

O barco

É um barco perfeito. Apesar de seu pequeno porte — tem quase seis metros de comprimento —, é uma embarcação insubmergível, dotada de um sistema de lastros líquidos que evitam capotagens, sendo também auto-esgotável — em caso de penetração de água, esvazia automaticamente.

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Todos os seus compartimentos são estanques. Os espaços não utilizados serão fechados com espuma de células fechadas, para que o barco, mesmo que furado, permaneça flutuando. Será dotado ainda de um sistema elétrico alimentado por painéis solares e um completo sistema de rádio-comunicação.

Projetado pela JCF Engenharia Ltda., no Rio de Janeiro, o barco foi construído em laminado de cedro moldado, revestido com manta de fibra sintética para que a superfície da embarcação não tenha atrito. Será abastecido de provisões e água suficientes para cerca de cinco meses de permanéncia no mar. Nos tanques de água potável, poderá carregar 275 litros.

— Vou levar comigo — explica Klink —dois dessalinizadores de água. Um inflável, inglés, e outro que estamos desenvolvendo no Brasil, - mais rígido e eficiente.

Durante todo o percurso, Amir estará em contato direto com quatro radioamadores. Um deles é médico. Em caso de emergência, o rádioamador terá à sua disposição um mapa com a localização exata de cada um dos remédios que compõem a farmácia completa que ele terá a bordo. Os outros rádioarnadores cuidarão de orientá-lo quanto à parte técnica dos aparelhos de comunicação e em relação aos componentes hidráulicos do barco.

A alimentação

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— Os alimentos têm de ser gostosos, com sabor, cheiro, e bem temperados. Não quero ficar privado de uma alimentação deliciosa, pois ela elevará o moral, dará mais ânimo.

Para o economista, o programa alimentar é um dos aspectos mais importantes da viagem. Ele aprendeu com o remador francês que qualquer descuido na alimentação poderá ocasionar sérios problemas de saúde, principalmente problemas de pele. Por isso vem acompanhando de perto os estudos sobre a alimentação mais adequada para a travessia.

Segundo Amir, o programa alimentar está sendo elaborado pela empresa paulista Nutrimental S/A, que está tomando todo o cuidado de preparar uma alimentação balanceada, à base de pratos desidratados prontos, liofilizados, preparados energéticos e rações de sobrevivência.

— Os pratos desidratados são pré-cozidos e já virão temperados e montados em embalagens herméticas, fechadas a vácuo, e à prova de altas temperaturas ou de eventual alagamento. O fechamento não inclui sal, para que possam ser reidratados quando for o caso, com a água do mar —explica o remador.

Amir terá provisões para 130 dias, sendo 30 dias de provisões de emergência, caso tenha de permanecer no mar mais tempo do que o previsto. As provisões serão divididas em embalagens diárias, com sete pratos. E pacotes semanais, numerados dia a dia, por ordem de consumo.

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Sem cometer exageros na alimentação, Klink ccnfessa que essa será também a parte mais interessante da viagem. “Vou comer o dia inteiro”, diz ele. Ainda assim, acredita que deverá perder alguns quilos durante a viagem, devido ao calor e ao fato de não ter muitas opções de movimentação dentro do barco. E, claro, por causa também das atividades diversas que desenvolverá em sua rotina de bordo.

Sobre essa rotina, o solitário navegante espera cumprir de oito a dez horas diárias de trabalho nos remos, com intervalo a cada duas horas. Pretende ter oito horas de sono por dia, mas ficará de sobreaviso em função das rotas de navegação. No início da travessia, as horas de trabalho serão em maior número, provavelmente durante a noite, para evitar colisões na zona costeira de pesca e para se afastar mais rapidamente da costa.

Durante o dia, Amir fará os cálculos de navegação, através de observações solares feitas com a passagem meridiana. Para os cálculos, utilizará uma minicalculadora astronómica e tábuas para navegação aérea. Sempre que houver mau tempo, ele irá abastecer os lastros líquidos para manter a estabilidade vertical do barco.

Da cabina, controlará o rumo pela face interna da bússola vertical, corrigindo o leme através de comando tipo morse. E, para manter a embarcação sempre em equilíbrio, Amir jogará fora tudo aquilo que for consumido. A comida que não usar não será reaproveitada.

O navegante

Amir Khan Klink nasceu em São Paulo, mas aprendeu a amar Parati, no litoral fluminense, desde pequeno, pois lá passou a maior parte de sua infância. E onde mora atualmente, dedicando seu tempo a uma criação de búfalos, a uma firma de imóveis, e, lógico, à navegação.

Não quer mais sabe de economia. Na família — pai libanês, mãe sueca, um irmão arquiteto mais moço e duas irmãs gêmeas idênticas, de 18 anos —, ninguém ainda entendeu direito o sentido de sua viagem.

— Acho que em Parati todos os meninos, desde cedo, começam a gostar de canoas. Quando os homens crescem, a canoa se torna muito mais importante que um carro. Garota não gosta de carro em Parati. E muito mais romântico passear de canoa ou cavalo, não é mesmo?

Sobre o projeto, ele diz que está investindo bastante dinheiro e que espera contar, já nos próximos dias, com a ajuda de um patrocinador. Calcula ter gasto até agora cerca de CrS 30 milhões de cruzeiros. Tem vontade de montar um museu com muito material sobre as embarcações típicas brasileiras, assim que retornar ao Brasil, provavelmente em julho.

Acha que este é o único país do mundo com uma cultura relativamente homogênea, que conseguiu produzir uma grande diversidade de embarcações típicas. “Que infelizmente estão desaparecendo diante de nossos olhos”, conclui.

— Temos um patrimônio cultural e artístico de valor incalculável. Dentro de dez anos, não vamos mais ter canoas ou jangadas. Por isso acho que ainda há tempo de descobrir as raízes desses vários estilos. Antes que seja tarde, demais.

Lembra que recentemente encontrou em um sebo, em Ilha Grande, um livro de Antonio Alves Câmara, escrito em 1888, sobre as construções navais indígenas brasileiras. Ficou fascinado. Conta ainda que, pelos escritores antigos de livros de viagens, aprendeu muito. Coisas que não são ensinadas na escola,.

— Historicamente, todas as rotas de colonização, de ocupação e de descobrimento foram fluindo em função do sistema de correntes e das técnicas de navegação daquela época. Isso a gente não aprende na escola. A gente acaba entendendo por que a colonização portuguesa demorou quase um século para ir do Golfo da Guiné até o sul da África; como Pedro Álvares Cabral veio parar no Brasil, aliando uma tática de navegação para dobrar a África. Ele ia para as Índias, mas tinha muita curiosidade de saber o que tinha por aqui. A ocupação das Américas também foi consqüência do regime de correntes e dos tipos de embarcação que existiam na época.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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