Com o placar decidido somente nos acréscimos do segundo tempo, gol de Sócrates e atuação impecável do goleiro Leão, o Corinthians conquistou o bicampeonato paulista de futebol 1982/1983 num emocionante empate contra o São Paulo no Morumbi na noite de quarta-feira 14 de dezembro de 1983.
No dia seguinte, não havia espaço para mais nada na capa do Jornal da Tarde, que em letras garrafais dizia “ALEGRIA DEMAIS” sobre uma foto do doutor Sócrates comemorando com o combalido goleiro são-paulino Waldir Peres ao fundo.
Jornal da Tarde - 15 de dezembro de 1983
A opção de enaltecer a felicidade dos corintianos na primeira página continuava no texto legenda:
“Alegria no futebol mágico do doutor Sócrates, alegria num time de garra, que levou o Coríntians ao bicampeonato ontem e ao título de maior campeão paulista (19 vezes contra, contra 18 do Palmeiras). Alegria que nem mesmo o gol do empate do São Paulo, 1 a 1, pôde diminuir.”
Leia os textos do repórter Arthur de Almeida e do colunista Roberto Avallone sobre a épica conquista que coroava a “democracia corinthiana”.
Jornal da Tarde - 15 de dezembro de 1983
A emoção do bi
Até Leão, acostumado a decisões, confessava: foi um jogo de arrepiar. Alguns choravam, de alegria, outros falavam de um futuro de mais títulos. Todos emocionados.
Arthur de Almeida
Quarenta e seis minutos do segundo tempo. Sócrates faz o gol do bi, E a torcida, do Coríntians emocionada comemora o título. Poucos viram o empate do São Paulo. E a Imagem seguinte faz a torcida delirar: de novo o juiz levantando os braços, apitando o final do jogo. A seguir, a cena maior desse espetáculo: o capitão Vladimir, lágrimas nos olhos, ergue a pesada taça, que a partir de ontem tem novo endereço, definitivo: Parque São Jorge.
Com muito esforço, foi carregada para o vestiário por dirigentes, jogadores e torcedores. Nesse vestiário, alegre como nunca se viu este ano, foi colocada sobre uma mesa. E ali testemunhou toda a euforia de muitos heróis, heróis corintianos que desfilavam vencedores, terminada a guerra do Campeonato Paulista.
Entre esses heróis, o goleiro Leão, fundamental nesse jogo decisivo, com suas grandes defesas. Naturalmente, era um dos mais requisitados para entrevistas. Poucos momentos antes, ainda no campo, tinha ouvido seu nome gritado por milhares de torcedores em festa:
— Foi um jogo dos mais emocionantes que já disputei em tantos anos de carreira. É difícil falar agora sobre o Coríntians, que não é um clube, é uma religião. E religião, assim como política, não se discute. Mas, para mim, esse título tem uma importância muito especial.
Entre abraços de torcedores que há cerca de dez anos o odiavam, Émerson Leão explicava os motivos de sua satisfação neste ano particularmente bom para ele: conquistou o titulo de biampeão e voltou à Seleção Brasileira.
— Eu queria reconquistar um espaço deixado em aberto. Fiquei afastado do futebol paulista durante seis anos e minha responsabilidade parecia ter aumentado. Mas aos poucos deixei de me sentir um estranho no ninho e me readaptei a tudo. Talvez esteja atravessando a melhor fase de minha carreira — dizia.
Já vestido, Casagrande deu a volta olímpica com seus companheiros abraçado a Adilson Monteiro Alves, o vice-presidente de futebol. Mancava muito, sentia dores na altura da cintura e também na perna direita. Falar também era difícil. Menos pela emoção mais pelo maxilar que saiu do lugar e também doia.
Esse outro herói, que saiu de campo antes do término da decisão semidesacordado numa maca, fruto do que chamou de “agressão” de Dario Pereyra, conseguia dizer:
— O Coríntians provou de novo que é um time vencedor. Os nossos jogadores, do Leão ao Eduardo, são acostumados a ganhar títulos, e, os únicos que não eram, ganharam hoje, como o Juninho e o Ronaldo. Agora, só estou pensando em tomar uma cerveja bem gelada. Aliás, tomar várias para comemorar. Assim como tomei uma antes do jogo — dizia, cigarro nas mãos, lembrando que o time provou que pode jogar bola quem bebe e fuma, como acontece abertamente no Parque São Jorge.
Sobre o lance com Dario, Casagrande comentava que o adversário foi maldoso. Ressalvou que não é de criticar ninguém, mas dizia:
— No caso da dividida, até aceito, embora tenha levado a pior. Mas eu estava caído no chão e ele me chutou, me pisou, sei lá. Ele estava muito nervoso e agiu com maldade. Isso eu não compreendo.
De cada quatro jogadores que eram entrevistados, pelo menos três elogiavam o sistema de trabalho implantado há dois anos no Corintians. É o que se convencionou chamar de “Democracia Corintiana”. E quem, em todas as declarações que deu, enalteceu o projeto, foi um de seus maiores lideres, o capitão Vladirnir.
— Tanto que entramos em campo com a faixa “Ganhar ou perder mas sempre com Democracia”. Queríamos provar que o sistema era e é um fato consumado. E em campo nós mostramos isso, jogando futebol com vontade e dando alegria a tanta gente que é a nossa torcida.
Claro que Vladirnir, o jogador que mais títulos conquistou pelo Coríntians (este é o quarto), estava emocionado. Mas lembrou mesmo assim que a equipe enfrentou muitos problemas durante a campanha:
— Não foram poucos os obstáculos a nível interno, mas fomos superando um a um com dedicação. Até chegarmos a esse titulo, inédito em três décadas. Tivemos de trabalhar demais. E, sinceramente, acho que o merecemos. Esse último jogo deve ser destacado, porque o São Paulo foi um grande adversário.
Outro que elogiou o São Paulo foi o zagueiro Mauro. Um jogador que se autodenominava um “guerreiro” nesta campanha, pois, afinal, até ameaçado de não jogar futebol este ano ele esteve. No clube desde 1971, falava sempre sorrindo:
— Imagine como posso me sentir: quantos e quantos jogadores passaram nestes anos todos pelo Corintians e não conseguiram um titulozinho. Jogadores de Seleção até, como o Rivelino. Eu consegui três já, e um bicampeonato ainda por cima. Mas admito: em determinados momentos, temi por um gol do São Paulo. Eles tentaram o tempo todo, pressionaram. Nós suportamos isso e marcamos primeiro, ainda bem — desabafou, confidenciando também que jogou sem suas melhores condições físicas.
Chegar onde estava Biro-Biro era muito difícil. Um dos maiores ídolos da torcida, cansou de ouvir pedido de torcedores para não deixar o clube como anunciou durante o ano. Guardou sua camisa para o seu pai, que mora em Recife, e não respondeu a essa pergunta nem aos jornalistas.
— Planos para o futuro? Não quero pensar nisso. Só quero comemorar — dizia ele, dando um sorriso malicioso, e passando a comentar o jogo e o trabalho que foi desenvolvido para se chegar ao bicampeonato:
— Importante é que todos se desdobraram demais hoje (ontem) porque tem de ser assim numa decisão. Eu procurei também fazer mais do que podia, e tinha certeza de que os companheiros pensavam e agiam como eu. Deu nisso outra vez — falou o jogador que, segundo Adilson Monteiro Alves, não será negociado em hipótese alguma.
Conforme o dirigente, nem Biro-Biro nem Zenon serão vendidos, como se noticiou no segundo turno. Eles fazem parte do plano do Corintians de buscar um título inédito na história do clube: o do campeonato nacional.
— Queremos, isso sim, reforçar esse grupo, sem nos desfazer de ninguém. Queremos chegar à Libertadores e disputar o Mundial. Com democracia, claro, que é o único jeito em que sabemos trabalhar. Para mim, este campeonato foi um dos mais difíceis dos últimos tempos. Para um hipercampeonato, um hipercampeão — falava Adilson.
O mais emocionado de todos, porém, era Juninho. Pela primeira vez ganhou um titulo e chorava muito (ver também página 4). Gritou várias vezes:
— Como á gostoso ser campeão. Eu não sabia que era assim tão bom. Gostei e agora quero mais. Um torcedor que passava e ouviu, comentou com outro, feliz:
— O consolo do São Paulo é que no ano que vem ele será trevice’...
Para o preparador físico Hélio Maffia não será difícil o clube alcançar suas metas: “Basta manter esse esquema tão criticado por tanta gente. A bagunça que diziam existir está aí. Quero continuar nela”.
JOGO ABERTO - Roberto Avallone
A rotina dos novos tempos: Coríntians campeão
Não foi o delírio de 1977, quando a torcida do Coríntians arrancava da garganta o grito de “Campeão!”, contido durante os longos 23 anos; também não foi a louca festa de 1979, ou a comemoração pelo brilahante toque de bola de 1982, na justa homenagem ao futebol-arte daquela vitória de 3 a 1 diante do São Paulo.
Desta vez, foi diferente. Era como se o Coríntians, mais que identificado com o astro Sócrates, vivesse a alegre rotina do vencedor. Um vencedor consciente, conformado até, que é capaz de renunciar ao futebol-arte, limitando-se a uma defesa segura e à chance sempre presente de uma arrancada de Biro-Biro, de um de um genial gol de Sócrates.
Ao empatar com o São Paulo por 1 a 1, com mais um gol do doutor, o Coríntians conquista o seu bicampeonato e passa a ser o clube mais vezes campeão paulista, com seus 19 títulos contra 18 do Palmeiras, 14 do Santos, 13 do São Paulo...
E não havia em Sócrates, o herói da conquista (no jogo de ontem, porém, o mais importante jogador foi o goleiro Leão), mais do que a alegria contida, da rotina de vencer:
— Está chorando, doutor?
— Não, estou com um pouco de dor de estômago.
— Você é o herói, você está feliz?
— Normal, normal (com sua voz rouca, abafada). Mas estou feliz, feliz, sim.
(E num gesto que revela o seu caráter, Sócrates atribuia a Leão, o goleiro a quem faz lá as suas restrições, o sucesso da campanha, especialmente nesta fase final.)
Havia quem chorasse, sim: lá estava Juninho, o que parecia eterno vice-campeão da Ponte Preta, agora já um bicampeão, chorando como menino; lá estava Jorge Vieira, trêmulo, agradecendo a quem tinha confiado em seu trabalho e também chorando. Mas a imagem, a cara do atual Corintians era mesmo o doutor Sócrates. Um eficiente e imperturbável bicampeão.
Assim foi a decisão
A emoção esteve sempre mais presente do que a técnica neste clássico final do Campeonato. Embore jogasse o São Paulo com um falso ponta-direita (Márcio Araujo) compondo o meio campo com Humberto (este marcando a Sócrates) e Zé Mário, sempre procurou mais o ataque o time de Mário Travaglini do que o Coríntians que, aparentando ousadia, fazia voltar Casagrande, saindo o dedicado Vagner.
Muito mais recuado do que de costume, explorando os contra-ataques, buscando incansavelmente os repentes de Sócrates, o Coríntians suportava a pressão do São Paulo, sabedor que o empate era suficiente para seus planos de bicampeonato.
E, por ironia, diante de um time que perdia a sua mobilidade quando a bola chegava aos pés do lento Marcão, foi o Coríntians quem criou as duas melhores chances de gol: uma, num chute errado de Alfinete, depois de um precioso lançamento de Sócrates; a outra, quando ele, o doutor dos gols decisivos, errou a cabeçada diante de Valdir Perez
Ao São Paulo coube a pressão inútil e o gol de Marcão, justamente anulado pelo juiz Boschilia (depois de consultar o bandeirinha), pois o centroavante estava mesmo impedido. Fora um zero a zero justo, equilibrando o Coríntians com seus gols perdidos o domínio maior do inimigo.
Mas, no segundo tempo, o São Paulo voltou mais decidido. Desistindo de centrar as bolas altas para Marcão, fez o que recomenda o futebol, a bola no chão, o jogo pelas extremas. E assim, atirando-se ao ataque com mais consciência, o São Paulo deu até a impressão de que iria vencer, provocando o terceiro jogo e adiando a decisão para o domingo.
Talvez até conseguisse, não fosse Leão, o goleiro das defesas impossíveis; talvez vencesse o tricolor, não tivesse Dario Pereyra a infeliz idéia de agredir Casagrande, acabando expulso com toda a justiça pelo juiz Dulcídio. Perdendo Dario Pereyra, o São Paulo perdeu as forças, perdeu a crença, perdeu a confiança, perdeu a razão.
E sem nenhuma culpa, acertando ao fazer entrar Paulo César no lugar do lateral Paulo, via o técnico Mário Travaglini o Coríntians ganhar força moral e partir para cima do adversário, buscando a vitória que, antes, interessava muito menos do que o título. Naturalmente, o gol saiu; naturalmente, urn gol de Sócrates. Eram 46 minutos.
Dulcídio ainda esticou o jogo, com motivos, e o São Paulo encontrou o seu gol de empate, por ironia numa cabeçada de Marcão, jogada que dava sempre em nada ao longo de todo o jogo. Empate justo até, que não tirava do Coríntians a rotina do exercício de ganhar o título. Um título histórico e merecido de bicampeão.
Leão, mestre das redes.
Sei lá se este Leão tem a simpatia ou o carisma dos goleiros inesquecíveis, tantas foram as suas discussões em sua longa carreira. Mas é o tipo do goleiro competente, eficiente e que, longe de tremer numa decisão, ao contrário, cresce nos momentos mais importantes, tem a raça de um campeão:
— Vamos ganhar, sim, vamos ganhar! — gritara Leão na concentração, pouco antes do jogo diante do Palmeiras, respondendo às propositais provocações do diretor de futebol, Adilson Monteiro Alves, que se fingia descontente com o ambiente de extrema calma do grupo de jogadores.
E quem não se lembra da defesa maravilhosa de Leão, a bola alta, no canto esquerdo, na cabeçada de Márcio?
— Eu vi gol! Eu vi a bola entrar! — reclamara Márcio, incrédulo.
Contra o São Paulo, Leão foi ainda mais goleiro. Ausente do primeiro jogo, quando o gol do Coríntians estava defendido por Solito, Leão defendeu um chute de Zé Sérgio e um arremate de Marcão que nem o russo Dasaev seria capaz de apontar defeito naquele show de acrobacia e segurança.
Três vezes campeão paulista pelo Palmeiras, bicampeão agora pelo Coríntians, sem contar os títulos de campeão brasileiro pelo Palmeiras e pelo Grêmio, segue Leão, aos 34 anos, com a justa fama de o melhor goleiro do Brasil. Ah, se Leão estivesse na Copa do Mundo de 1982...
Não fuma, não bebe, parou de tomar café. E prometeu a um amigo que “vou até os 40, pode acreditar em mim”.
Leão fica no Coríntians? Leão vai para o Palmeiras? Ontem, logo ontem essas perguntas?
— Nem quero saber disso, quero só esse título. Depois, bem, depois é outra história.
P.S.: e o Coríntians, bicampeão, antecipou este Jogo Aberto, que, publicado hoje, descansa amanhã.
Jornal da Tarde
Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.
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