Madonna: “Marilyn me fascinava. Mas ela foi uma vítima. Eu não.” Leia perfil de 1987 da cantora

Comparação com a estrela do cinema perseguia a cantora quando o seu sucesso explodiu

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Por Acervo Estadão
Atualização:

“A mulher mais famosa do mundo naquele momento”, Madonna fascinava e intrigava no interlúdio dos anos 80. “Quem é essa garota?” era o título de seu show e do filme que estrelava. Tentando responder a essa pergunta, o repórter Edmar Pereira escreveu um perfil da cantora - “Um novo mito da indústria do disco” - que foi publicado no caderno ‘Divirta-se’ do Jornal da Tarde de 11 de setembro de 1987.

Além de contar a trajetória da artista até o sucesso, o texto mostrava como a cantora tinha uma obsessão: não ser manipulada por ninguém, não permitir que se faça nada que a envolva sem seu controle direto. “Ninguém vai me impor o que quer que seja!”. Leia a íntegra:

Jornal da Tarde - 11 de setembro de 1987

Reportagem sobre Madonna no Jornal da Tarde de 11 de setembro de 1987. Foto: Acervo Estadão

Madonna, um novo mito da indústria do disco

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Ela passa para trás outros ídolos, atrai multidões no mundo todo tanto em shows como no cinema, exibe sensualidade e músculos e mostra uma força de vontade que supera qualquer obstáculo. Por Edmar Pereira.

Para que o clichê seja perfeito, falta apenas o dado comovente da miséria, coisa que definitivamente não ameaçou a infância de Madonna Louise Veronica Ciccone. Mas a receita do mito, que há dois anos já incendiara os Estados Unidos e agora atravessou o Atlântico para colocar toda a Europa a seus pés, inclui pai italiano e um pouco ausente, uma vez que era funcionário da Chrysler, infância passada num subúrbio triste de Detroit, a capital mundial da indústria automobilística, uma família com sete crianças, entre as quais era a mais velha, a morte da mãe quando a garota tinha apenas seis anos, a presença de uma madrasta com a qual obviamente não combinara seu temperamento independente, e escolas católicas de educação compreensivelmente rígida.

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É assim que começa a história da mulher mais famosa do mundo neste momento, da vendedora de 25 milhões de discos, da atriz de quatro filmes, desta loura de 28 anos de idade que conseguiu desalojar do misógino topo econômico da indústria do disco um pelotão que durante tantos anos se revezou nos primeiros lugares, composto por David Bowie, Bruce Springsteen, Prince e Michael Jackson, entre outros.

E lhe bastaram apenas quatro anos e três LPs, sem falar de uma notável força de vontade, dessas que derrubam qualquer empecilho entre ela e o objetivo escolhido, e um talento que pode ser discutido quando se ouve apenas a sua voz, mas que não pode ser negado quando se percebe seu notável domínio de cena ou sua inteligente intimidade com a tecnologia multiplicadora e ampliadora de imagens.

Como seus colegas masculinos campeões, Madonna é um fenômeno de massa, em cujo componente entram todas as possibilidades dos meios de comunicação a serviço da indústria. Mas essa química de efeitos calculados só funciona quando apoiada sobre uma base substantiva e real, como se sabe. Há menos de duas semanas, quase 130 mil franceses foram vê-la em Sceaux, perto de Paris, no magnífico parque de um castelo onde o rock só entrou por interferência direta do primeiro ministro Jacques Chirac, acusado por seus adversários menos à direita de haver se aproveitado da fama da cantora para suas pretensões de ser presidente da França.

Neste tour europeu, Madonna colecionou multidões também no Japão, em Londres, em Amsterdã, em Nice, em Turim, em Florença — pois os mandamentos da economia estimulavam uma abertura da sensibilidade, levando a filha de italiano a reencontrar-se com suas raízes, visitando e deixando-se fotografar ao lado de parentes nunca vistos antes.

Nova Marilyn?

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Dez quilos mais magra, resultado de uma dieta vegetariana: um porte muito mais atlético, conseqüência de algumas horas semanais dedicadas ao body-building (nutricionista e instrutor de ginástica integram sua equipe de 50 pessoas; que inclui também músicos, bailarinos, cozinheiras, cabeleireiro, massagista, maquiados e costureiro), Madonna exibiu seu new-look em espetáculos de 90 minutos, que com os inevitáveis pedidos de bis, chegaram a 105.

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Terminava de botinhas e corpete negros, com muito brilho, depois de haver atirado à platéia delirante seus sensuais culotes vermelhos e trocado de roupas várias vezes. Pernas e ombros musculosos, bíceps salientes — que ela valoriza em determinados momentos, provocando uma onda de suspiros também, ou principalmente, entre a platéia feminina, aliás, desde a explosão nos Estados Unidos em 1984, o suporte principal de sua popularidade — e cabelos bem mais curtos. Um pouco como Marilyn Monroe, semelhança reforçada pela boca ampliada por batom bem vermelho. Mas já contestada por muitos, inclusive Boy George, para quem “aproximar Madonna de Marilyn é como comparar Raquel Welch com um ônibus”.

Depois das turnês pelos Estados Unidos e Europa, não falta quem lance rumores sobre uma extensão dessas apresentações à América do Sul. No Brasil a cantora vendeu, segundo a gravadora WEA, em números redondos, cerca de cem mil cópias do seu primeiro disco, 500 mil do segundo — Like a Virgin, que marcou sua explosão no mundo em 85 — e 700 mil do terceiro, True Blue, em cuja capa ela já aparece magra e com um pescoço longo o suficiente para inspirar Modigliani, embora na vida real não seja exatamente assim.

E quando se pensa em vida real, por mais que essa expressão esteja hoje distante de uma superstar que se cerca de isolamento forçado e de guarda-costas o tempo inteiro, dá para se ver como em termos profissionais e econômicos uma turnê de Madonna ao Brasil parece difícil, a não ser por interesses não imediatamente visíveis da indústria.

Ela ganhou 2,3 milhões de dólares por seus dois shows na Itália e quase três milhões por sua apresentação em Sceaux, sendo que na França doou um cheque de 85 mil dólares para uma fundação anti-Aids, a doença que mata, mas que também se tornou um eficientíssimo veículo de promoção. Doando seu cheque, Madonna saiu na imprensa do mundo inteiro — publicidade que se fosse paga custaria dezenas de vezes mais — e ainda descontou sua doação no Imposto de Renda. Com cachês tão estratosféricos, fica difícil imaginar Madonna tirando seus calotes no país do salário mínimo de 45 dólares.

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Uma mulher-objeto, manipulada e dentro das fronteiras do clichê feminino, ou uma revolucionária dos costumes, uma mulher avançada? Dependendo de quem fale ou analise, Madonna pode ser as duas coisas, uma de cada vez ou até ambas ao mesmo tempo. Ela foi acusada pelas feministas americanas de retroceder a imagem da mulher em 30 anos, tanto por apresentar-se no palco com roupas que atendiam ao convencional das fantasias masculinas (sutiãs e calcinhas de renda, na sua primeira fase) como também por canções como “Material Girl”, na qual reafirmara o velho clichê de que o amor feminino é movido por razões econômicas, com a mulher usando sua beleza para desfrutar o que o homem consegue com seu trabalho.

Mas essas mesmas feministas mudaram de opinião diante da canção “Papa Don’t Preach”, em que Madonna é uma grávida solteira que recusa o aborto proposto pelo pai (e nos shows, durante esta música aparece nos telões laterais do palco Ronald Reagan e João Paulo II).

Madonna já escandalizou usando crucifixos, como que exorcizando sua educação religiosa (“adoro os crucifixos, acho que são muito sery, pois tem sempre um homem pelado deitado sobre eles”, disse em entrevistas); já provocou sorrisos encantados vestindo-se de noiva para cantar “Like a Virgin”, em que admite justamente o contrário; já se vestiu como strip-teaser de peep-show para “Open Your Heart”, cujo videoclip, dirigido por Jean Baptiste Mondino, foi banido pela poderosa MTV como imoral. A ameaça de boicote da emissora por milhares de fãs furiosos fez a classificação ser rapidamente mudada — ou tudo terá sido apenas um golpe?

Além das escolas católicas, Madonna foi enviada também à escola de música, pois seu pai exigiu de todos os filhos que aprendessem tocar alguns instrumento. Ela foi às aulas de piano o tempo suficiente para fazer com que seu professor convencesse o pai italiano a enviá-la para urna escola de dança. Isto mudou sua vida e já a partir dos primeiros passos Madonna começa a encontrar, ou a criar, seu estilo, baseado na provocação ingênua, na transgressão que se apóia no humor — o que está também nas letras de suas canções, todas assinadas por ela.

Aos 16 anos já fazia de tudo para atrair atenção, inclusive recusar a corte dos garotos brancos de Detroit para namorar um negro, Steve Bray, baterista de uma orquestra de rhythm and blues. “Ela tinha já uma aura impressionante, uma energia incontrolável. Eu sabia que ela acabaria fazendo alguma coisa, que não seria uma anônima”, Bray se recorda.

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Aos 17 anos já estava em Nova York, desembarcando com a energia e 35 dólares na bolsa. Vida boêmia, presença constante nas discotecas punks e new-wave, cursos de dança pagos com trabalhos como garçonete ou posando nua pana fotos —que obviamente apareceriam nas maiores revistas do mundo depois de sua fama. Trabalhou seis meses no grupo de Alvin Ailey e depois, como outros dez mil bailarinos desempregados de Nora York, fez um teste atrás do outro, sem conseguir nada. Em 79 foi com o cantor francês Patrick Hernandez para Paris, como corista do seu show e ainda sem pensar em ser cantora. Morava no apartamento do cantor “e queria ser uma estrela de qualquer modo, na dança, no cinema, na canção, não lhe importava onde!”

Hernandez se lembra, como outros amigos, da vida sexual movimentada e sobretudo independente de Madonna: “Se sentia atração por alguém pegava na hora. No dia seguinte mandava embora”. Mas há também quem veja essa independência como bastante programada: em matéria de cama, ela nunca separou o agradável do muito útil, uma espécie de sacerdotisa, sacrificando amantes no altar de sua ambição”, acusa um dos abandonados úteis.

Em 1982 Madonna deu finalmente o passo definitivo. Depois de haver passado como baterista pelo grupo The Breakfast Club, ela conseguiu gravar um “demo” para ser mostrado ao produtor Seymour Stein, da Sire Records, pequena companhia de discos que trabalhava com então iniciantes, como os Talking Heads, The Pretenders ou Ramones. Seymour estava internado num hospital e Madonna foi vê-lo. Ele ficou impressionado com a música (uma confusão, mistura de rock, rhytm and blues, disco, com um toque de new wave, era imressionante”) e também com a autora (’foi fria e tremendamente objetiva, me viu na cama e não perguntou uma única vez pela minha saúde, tinha ido lá falar de negócios e só falou de negócios, era uma criatura diferente”).

Atacando no cinema

Alem dos discos, Madonna quer também seguir uma carreira cinematográfica, mesmo que seu casamento — celebrado em agosto de 1985 — com o paranóico, violento com a imprensa ou com qualquer um que olhe para sua mulher, ator Sean Penn, continue suspenso, como parece estar atualmente.

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Em 1984 ela fez o papel principal de um filme barato e pornográfico, A Certain Sacrifice. No ano seguinte acertou: Procura-se Susan Desesperadamente (Desperatly Seeking Susan), comédia moderna de Susan Seidelman, em que dividia o estrelato com Rosanna Arquette e fazia uma personagem muito próxima dela mesma. “Na verdade, eu roubei a personagem de Madonna para construir Susan”, admite a diretora.

Ano passado, com o marido Penn, derrapou espetacularmente: Shangai Surprise, dirigido por James Godard e produzido pelo Beatle George Harrison, foi um fiasco. “No segundo dia de filmagem vi que Jim não sabia absolutamente o que estava fazendo, percebi que seria cúmplice de um desastre”, diz a cantora.

Há pouco mais de um mês foi lançado nos Estados Unidos seu quarto filme, Who’s That Girl?, que é também o nome do seu show. Madonna é dirigida por James Foley (que dirigira Sean Penn no ótimo Paixões Violentas) e contracena com Griffin Dunne. Os críticos não gostaram muito, mas nos primeiros cinco dias de exibição o filme havia faturado quase cinco milhões de dólares em 900 cinemas, o que não é recorde mas é um bom índice.

O fantasma de Marilyn sem dúvida persegue este novo mito, que promete vingança: “Quando eu era menina, Marilyn me fascinava. Mas ela foi uma vítima. Eu não. Ninguém vai me impor o que quer que seja!”

Esta é, segundo quem está mais próximo dela, uma obsessão de Madonna: não ser manipulada por ninguém, não permitir que se faça nada que a envolva sem seu controle direto.

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Além da procurada semelhança com Marilyn, ela já foi identificada também com Mae West e, — num evidente exagero dos seus fãs, com a sensualidade calculadamente sofisticada de Marlene Dietrich. Imagem que certamente lhe fará sombra se Madonna aceitar ser a protagonista de uma refilmagem de O Anjo Azul, a ser dirigida por Diane Keaton. Se isto parecer se forte demais, já existe uma alternativa: estrelar a versão americana de Cleo de 5 às 7, sucesso francês da diretora Agnés Varda, que acompanha justamente a vida de uma cantora durante duas horas. Ela só não admite mais filmar nua.

E, quando fala de outras o atrizes, diz sentir afinidades com Judy Holiday e Carole Lombard, duas grandes comediantes do passado: “Estou num estágio da minha carreira em que não posso mais me permitir fazer urna cena de nudismo, mesmo se o filme for bom. O que eu quero é resgatar para o cinema atual uma certa mistura de humor e vulnerabilidade, pois um mulher pode ser dura, ambiciosa e igualmente terna e sensível”. Ou seja, justamente como Madonna.

Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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