José Adilson Rodrigues dos Santos [1958-2024], o Maguila, tinha 25 anos em 1984, quando foi o tema de uma reportagem de Marco Antônio Rodrigues no Jornal da Tarde. Sob o título “As esperanças do nosso boxe”, Maguila e o meio-médio ligeiro Chiquinho de Jesus ganharam uma página inteira no caderno de Esporte da segunda-feira 27 de fevereiro de 1984. Na foto principal, os dois apareciam juntos no terraço do Edifício Itália, simulando se encararem como numa luta.
No perfil de Maguila o repórter destacou logo no início a opção consciente do lutador em correr os eventuais riscos de saúde do esporte, que acabariam se confirmando no futuro, em nome de uma chance de melhorar de vida.
“Não tenho medo de ficar louco. Não deve ser pior do que passar fome”, afirmou na época, referindo-se às sequelas neurológicas que muitos pugilistas sofrem por causa das fortes pancadas que levam na cabeça durante a carreira.
“Ou a gente sobe no ringue para bater nos outros ou volta para a vidinha de João de Bаrrо”.
Maguila, no Jornal da Tarde de 27/2/1984.
Leia a íntegra:
Jornal da Tarde - 27 de fevereiro de 1984
ADÍLSON “MAGUILA” RODRIGUES
Por Marco Antônio Rodrigues
Ele já fez sete lutas como profissional e venceu todas por necaute. Adilson poderá ser o primeiro brasileiro a disputar o título mundial dos pesos pesados.
Os murros são de raiva. Não há nenhum prazer em subir ao ringue para bater e apanhar. A briga aqui é pela vida. A luta é contra a fome dele, dos dois meninos, da mulher. É garantir o aluguel de 70 mil na casinha de dois cômodos, fundos, na Ponte Rasa.
— Não tenho medo de ficar louco. Não deve ser pior do que passar fome.
Adilson Rodrigues, 25 anos, sergipano, 1m84, 96 quilos, uma das esperanças do boxe brasileiro, é assim mesmo. Fala pouco e direto. É muito sincero. Não aprendeu ainda a arte de desconversar, fazer média, e mostra a sua realidade por inteiro.
— Ou a gente sobe no ringue para bater nos outros ou volta para a vidinha de João de Bаrrо diz ele, secamente.
João de Barro, pra quem não sabe, é pedreiro, na gíria dos homens simples da periferia. E olha que Adílson era um pedreiro respeitado. Só pegava serviço por empreitada, pois sabia que com a sua força trabalhava por três homens normais. Mas doía muito quanto faltava comida em casa, quando não tinha dinheiro para pegar o ônibus no Parque D. Pedro e ter que ir a pé até a Ponte Rasa, aquele fim de mundo lá pelos lados de São Miguel.
Por isso, mesmo contra a vontade dos irmãos, dos amigos que alertaram sobre os perigos do boxe (ou faz sucesso ou acaba louco de tantos socos que leva na cabeça), ele não pensou muito para definir. Começou logo a procurar as academias de São Paulo. Gostou mais da Academia do BCN, ali no centro, na rua Varnhagem, uma travessa da Ladeira Porto Geral. Gostou mais mesmo dos sábios conselhos do velho Ralf Zumbano e passou a derrubar um por um dos seus adversários. Hoje, não tem mais medo de nada:
— Sinto que sou forte, que pego firme. Por enquanto, não peguei ninguém com a minha força. E não tenho medo. Homem do Norte tem duas virtudes: não mente e é valente.
Venceu todas
Adilson “Maguila” Rodrigues fez sete lutas como profissional e venceu todas por nocaute. Na última, pelo título sul-americano, derrubou o argentino Domingo D’Elia no oitavo assalto. Mas uma manobra pouco clara do empresário Kaled Curi não confirmou, apesar da vitória, o título de campeão sul-americano. E o valente sergipano já aprendeu cedo: teme mais os empresários do boxe do que os adversários que enfrenta no ringue.
— Com tudo isso de ruim que já conheci no boxe, finalmente aconteceu uma coisa muito boa: o patrocinador. Felizmente, hoje eu sou um atleta.
Vinte e cinco anos e uma força incrível nos punhos, ele pode ser o primeiro brasileiro a disputar um título mundial dos pesos pesados. A Condugel-Eletronik resolveu investir nesses punhos. Paga 500 mil cruzeiros por mês ao boxeador e mais as despesas de alimentação e aluguel. Quis alugar uma casinha melhor para a sua família, em Arujá, mas Adilson não quis mudar:
Saio do barraco só para morar em uma casa minha. Por isso, quero lutar logo, lutar mais, para conseguir tanta coisa que a gente precisa. Mas com paciência vamos chegar lá. Medo não tenho.
Ali, na ladeira Porto Geral, no centro da cidade, nos ambulantes do parque D. Pedro, estão os seus maiores fās. Adílson já virou ídolo. Ele passa todas as tardes para ir treinar na Academia do BCN e a fama da força do seus punhos é muito respeitada. E gente que conhece o boxe por dentro, como Ralf Zumbano, o seu técnico, não tem medo de dizer:
— Eu não sou de iludir ninguém. Mas o Adíson pode chegar a brigar por um título mundial. Não pode se “mascarar”. Ele é bom, tem uma pegada fortíssima, é valente e só precisa lutar mais para ganhar mais experiência. Não vejo nenhum outro lutador brasileiro, em todas as categorias, com o futuro de Adílson.
Rosto sempre amarrado, voz grossa, resmungou:
— Mascarado nunca. Lá em cima, no ringue, não tem feio e nem bonito. É pau mesmo, pancada, e se não bater firme morre feio.
Estilo de Louis
Todas as manhãs, às sete horas, ele corre dez quilômetros pelas vielas da Ponte Rasa, onde mora. Os meninos da vizinhança começam a persegui-lo nos primeiros duzentos metros mas não conseguem. Lá vai “Maguila” em boa velocidade, ga nhando mais força para, quem sabe, um dia ser um boxeador tão famoso como foi Joe Louis, seu grande ídolo.
— O meu estilo é mais parecido com o de Joe Louis. Quando eu era menino gostava muito do Clay. Mas depois que vi os filmes do Joe Louis me identifiquei com ele. Procuro assimilar o seu jeito. Todos os anos vou assistir o filme do Joe Louis, “O lutador do Século”, na Federação. Cada vez que vejo esse filme saio com mais vontade de lutar. Acho até que se o Joe Louis pegasse o Clay dava uma surra nele.
Um outro patrocínio, do Executivo Drink, que fica na rua Sete de Abril, sempre o ajudou. Com um dinheiro mensal e uma boa refeição toda vez que passa por lá. Ele paga com uma publicidade no calção de luta. Outros amigos contribuem doando alguns quilos de carne - e há um mês, quando não tinha um patrocinador fixo, os próprios humildes lutadores que freqüentam a Academia do BCN, pessoas mal alimentadas, subempregadas, ajudavam Adílson com o dinheiro da condução e, principalmente, para comer:
— Mas agora estou levando vida de atleta diz ele. Daqui pra frente não posso mais reclamar de nada. Estou recebendo um grande apoio e treinando demais.
Na Ladeira Porto Geral, no CMTC Clube, onde costuma assistir às lutas, e pelos lados da Ponte Rasa, recebe muito apoio. Agora, passou a ser melhor identificado, já que não abandona o agasalho preto com as inscrições do seu nome e do patrocinador. Os braços fortes, o andar altivo, rosto sempre bravo, tem a imagem de um impiedoso boxeador. Mas se desmancha todo em humildade e gentilezas quando param na rua para cumprimentá- lo:
— O pessoal me dá uma força. Por onde ando, hoje, já sou reconhecido. E olha que ainda nem comecei.
Adílson é realista. Nunca foi à escola, mas é inteligente. Sabe que precisa massacrar todos os adversários que encontrar pela frente para sobreviver no perigoso mundo do boxe e quem sabe mais tarde conseguir ganhar alguns milhares de dólares, agora ainda apenas uma miragem.
Ganhei só 320 mil cruzeiros por uma luta que estava em jogo o título sul- americano. Foi a minha maior bolsa.
Vinte irmãos
Nasceu em Aracaju, e diz que é “homem do Norte” com muita honra. Teve 20 irmãos: seis morreram ainda crianças, quatorze saíram de Aracaju para ganhar a vida no Rio e em São Paulo. Um deles, um fortíssimo estivador no porto do Rio de Janeiro, morreu há dois meses com 13 tiros no peito, na porta da sua casa:
— Não era malandro diz Adílson. — Era muito forte e tinha a mania de não levar desaforo para casa. Foi vingança de briga.
Todos na família são muito fortes. Por isso, Adílson resolveu levar um deles, Gilson Rodrigues, 21 anos, para lutar boxe também. Gilson é meio-pesado e só o fato de ser irmão de Adílson já está fazendo os adversários fugirem. Ainda amador, não pôde fazer as suas duas últimas lutas - os adversários não compareceram. Mas ele lutará amanhã, no CMTC, contra Ildo Donizetti, da Pirelli, se não surgir nenhum imprevisto de última hora.
Quando os irmãos Adílson e Gilson estão treinando, a Academia do BCN pára. O treino vira briga para valer. Golpes duros, certeiros, pegados firmes como os de verdadeiros campeões.
E quem vê (ou já sentiu) a força da esquerda ou da direita (bate com as duas, quase que com a mesma potência) sabe que está entrando na história dos pesos-pesados do boxe brasileiro talvez uma das suas maiores estrelas.
O Brasil nunca teve tradição nesta categoria. Por falta de grandes valores e também de orientação, falta de estrutura no boxe. A rigor, apenas quatro lutadores apareceram com algum destaque nesta categoria: Benedito Santos, o “Ditão”, na década de 20, com pouca técnica e uma força descomunal; Luís Campos Soares, o “Gaúcho” que fez muitas lutas internacionais, “Vicentão”, o “Touro de Osasco”, outro lutador fortissimo; e, por último, Luís Faustino Pires, que andou pelos Estados Unidos por conta própria, sem orientação, e que acabou com o braço quebrado por soco de George Foreman.
Agora, entra na cena da história dos homens mais fortes do boxe brasileiro, o demolidor “Maguila” - o apelido foi inspirado no gorila, personagem dos desenhos animados. Um lutador sem a escola dos boxeadores norte-americanos, sem experiência, sem muita técnica, mas com a fome, a força e a garra de quem entra na briga para ganhar ou morrer.
10 quilos de carne
O perfil de Maguila foi publicado 20 dias depois de uma primeira reportagem intitulada “Maguila, o demolidor”, de Carlos Eduardo Alves, após a uma vitória por nocaute sobre o argentino Domingo D’Elia, campeão sul-americano dos pesos-pesados. A ainda precária questão financeira do atleta também era abordada:
Esse dinheiro só vai dar para pagar o aluguel de Cr$ 70 mil que vence no dia 1º e comprar umas roupas para as crianças e para a mulher. Mas não tem importância: sou novo ainda e posso ganhar mais um pouco de dinheiro. É só continuar batendo nos caras que aparecerem pela frente.
Maguila, no Jornal da Tarde de 7/2/1984
Leia a íntegra:
Jornal da Tarde - 7 de fevereiro de 1984
Maguila, o demolidor
Por Carlos Eduardo Alves
O dia de Adilson Rodrigues, o Maguila, começou mais tarde ontem: em vez de acordar às 5 horas da manhã, para correr os habituals dez quilômetros, o homem que tinha nocauteado, na noite anterior, o campeão sul-americano dos pesos pesados dormiu até as 11 horas. Afinal, ele só chegou em casa, na Ponte Rasa, às 3 horas da manhã.
E o sergipano Adílson, 25 anos, logo que saiu de casa, foi cobrar a promessa do seu Manoel, dono do açougue do bairro:
— Ele tinha prometido dez quilos de carne de primeira para mim se eu conseguisse derrubar o argentino. Eu não esqueci e fui lá buscar.
Apesar de ter-se transformado no mais novo ídolo daquele bairro pobre da Zona Leste - quase todos os moradores assistiram à luta de domingo pela televisão - a vida do ex-pedreiro Adílson continua a mesma. E como poderia mudar, se dopois de todos os aplausos e cumprimentos recebidos ele só ganhou Cr$ 320 mil de bolsa?
— Esse dinheiro só vai dar para pagar o aluguel de Cr$ 70 mil que vence no dia 1º e comprar umas roupas para as crianças e para a mulher. Mas não tem importância: sou novo ainda e posso ganhar mais um pouco de dinheiro. É só continuar batendo nos caras que aparecerem pela frente.
Mesmo que isso signifique sacrifícios, difíceis de serem cumpridos por “um homem do Norte”. A abstinência sexual de 20 dias antes das lutas, “para a gente pegar mais raiva do adversário”, dormir todos os dias às 20h30 e treinar, treinar muito. Mas, mesmo assim, sacrifícios menores que os do tempo de amadorismo, quando trabalhava de pedreiro, treinava no final da tarde e ainda encontrava tempo para, de madrugada, fazer um “bico” como segurança de motel:
— É, a vida já foi bem mais dura. Hoje eu posso dar uma alegria para os meus parentes, e compensa. Se você visse a alegria do meu irmão Maurício, cobrador de ônibus no Rio, depois da luta, daria para entender isso. Ele chegou domingo de manhã, de ônibus, viu a luta, chorou de alegria e foi correndo para a rodoviária, porque tinha de trabalhar hoje (ontem) cedo. É por esse pessoal que eu dou pancada nos adversários. Quem sabe um dia eu possa ajudar os irmãos em alguma coisa.
Amanhã, Adíson vai ver a casa que seu patrocinador, a Condugel, vai alugar para ele, em Arujá. Ele deve mudar-se logo, mesmo que tenha que se separar dos amigos da Ponte Rasa, que até caravana fizeram para ver a luta de Maguila no domingo: Vai ser muito bom para mim. Em Arujá o ar é mais puro e isso ajuda na preparação. Além de não pagar mais aluguel, é claro.
O ar de Arujá deve ajudar as corridas matinais que Adilson volta a fazer ainda esta semana. Dentro de no máximo seis semanas ele deve enfrentar outro argentino, Musladino, e depois partir para a disputa do título sul-americano contra Antônio Figueroa. O atual campeão, Domingo D’Elia, depois da derrota de domingo, deve desistir do boxe e dedicar-se ao rugbi.
Adílson só não sabe quem vai empresariar estas lutas. O episódio da não-oficialização de seu desafio ao campeão ainda não foi esquecido: “Eu assinei um contrato em que estava escrito que a luta valia pelo título. Depois o empresário veio com essa conversa mole que não valia mais o campeonato. Eu sou nordestino, gosto das coisas certas. E, apesar de não parecer, sou inteligente e ninguém vai me passar a perna mais”.
Jornal da Tarde
Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.
Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.
Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.