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Mario Quintana e o “Caderno H”: das páginas de jornal a livro best seller

Prosa poética que o poeta publicava no jornal gaúcho Correio do Povo foi sucesso nacional quando lançada em livro

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Por Acervo Estadão
Atualização:

“Um engano em bronze é um engano eterno”. Com essa frase o poeta Mario Quintana um dia se recusou a escrever um texto para uma placa num marco erguido em homenagem a ele na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul. No Jornal da Tarde de 13 de março de 1974 essa saborosa história foi usada para começar a contar como o poeta gaúcho estava na lista dos livros mais vendidos do Brasil com o seu “Caderno H”, que reunia seus textos publicados na imprensa gaúcha. Leia a íntegra.

Poeta e escritor na redação do jornal Correio do Povo, em Porto Alegre. 11/3/1974 Foto: Acervo Estadão

Jornal da Tarde - 13 de março de 1974

Reportagem sobre o sucesso do livro Caderno H, de Mario Quintana, no Jornal da Tarde de 13 de março de 1974. Foto: Acervo Estadão

As histórias do poeta já tem um publico maior

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O novo livro de Mario Quintana está entre os mais vendidos

Quando Caderno H começou aparecer nas listas de livros mais procurados nas principais capitais brasileiras, os intelectuais de Alegrete suspiraram aliviados: não tinham cometido um engano ao erguerem em praça pública um marco a Mário Quintana, o maior poeta da cidade O engano fora do poeta, que se recusara a escrever uma frase para a placa, alegando que um engano de bronze é um engano eterno.

Mario Quintana e essa frase de recusa estão eternizados juntos em Alegrete. Para a alegria das rodas boêmias e intelectuais de Porto Alegre, que tem mais uma das histórias de Mario Quintana para contar.

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Histórias que até seis anos atrás ele contava pessoalmente, boêmio e bom copo que sempre foi. Mas uma terrível ordem médica, limitando à água mineral a dieta etílica do poeta, fez com que essas historias passassem a ser contadas, em prosa poética na famosa coluna que Mario assina desde 1940, primeiro em A Província de São Pedro, depois no Correio do Povo: o Caderno H

Como não e difícil de deduzir, Caderno H, o livro publicado em novembro pela Globo, reúne notas líricas ou rememorativas. Pequenas crônicas, contos e poesias publicados no jornal (aos sábados) e selecionados pelo próprio Mano Quintana.

Os contos são poucos, embora ele tenha começado como contista, nos anos 20, e tenha até vencido um concurso com eles.

— Mas eu logo notei que todos os personagens dos meus contos se pareciam comigo. Mudavam as situações, mas continuava o mesmo personagem. Isso e inconcebível num contador de histórias. Ele precisa transformar-se em dezenas ou centenas de vidas, sem envolver-se na trama. É isso que me fascina em Balzac. Quando ele pinta seus personagens, a gente se afunda na leitura, porque todos são fascinantes.

MARIO, O PERSONAGEM.

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E Mario Quintana é sobretudo um personagem, um assunto para histórias. Como aquela, famosa em Porto Alegre, da estagiária do Correio do Povo que foi pedir ao poeta timidamente, um título para sua matéria sobre o Dia das Mães. Mario Quintana concordou, mas pediu algum tempo para pensar. Dez minutos depois, a mocinha recebeu seu titulo: “A tua que é mais pirua”. Ela recolheu a lauda, agradeceu e ficou seis meses sem cumprimentar o poeta.

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Sentado numa mesa do bar da Rádio Guaíba — no mesmo prédio do Correio do Povo — diante de uma xícara de café preto e de dois quindins, Mario ainda tem um repertório de casos pitorescos, tristes ou engraçados. Ali, como num banco da praça da Alfândega ou numa poltrona de seu apartamento no velho Hotel Majestic, Porto Alegre e seu assunto favorito, sua grande paixão.

Nunca esteve em São Paulo e só uma vez foi ao Rio: em 1969 quando a Editora Sabiá lan çou sua antologia poética. Mas esta viagem teve outro motivo

— O Manuel Bandeira me escreveu dizendo que gostaria de me abraçar, antes de morrer. Não vinha a Porto Alegre porque tinha horror de avião e sua saúde ja não permitia uma viagem por terra. Como eu podia recusar um convite de Bandeira?

PROFISSÃO: TRADUTOR.

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Bandeira foi um de seus companheiros na tradução de À Procura do Tempo Perdido, de Proust (os outros: Carlos Drummond de Andrade e Lúcia Miguel Pereira). Quintana era um tradutor lento, segundo testemunho de amigos, mas em compensação seus trabalhos eram perfeitos. Tanto que a Globo lhe deu um trabalho, chamado “revisão de fidelidade”

— Eu fazia a revisão de fidelidade, quando não estava traduzindo. Uma moça lia o texto traduzido e eu acompanhava no original, catando erros ou endireitando frases. Até hoje não sei porque trocavam de moça toda semana. Mas desconfio que eles queriam evitar maior intimidade entre a moça e o poeta...

Esse era o tipo de trabalho que lhe permitia sobreviver em Porto Alegre, a maravilhosa cidade que ele tentou mostrar a Marques Rebelo e este não viu porque não quis:

— Há tempos, o Rebelo esteve em Porto Alegre e eu e o Telmo Vergara fomos com ele aos altos de Petrópolis. Basta dizer que era outono... Eu disse ao Rebelo: “Está vendo? As cores não se misturam, tudo parece recortado à tesourinha no horizonte. A paisagem de Porto Alegre é anterior ao impressionismo.” Ele arregalava os olhos, concordando com tudo. Mas, de volta ao Rio, escreveu: “Como eles não têm nada o que mostrar, gabam os crepúsculos”.

Quintana gaba mesmo, e só sai de Porto Alegre morto. Nunca foi homem de grandes viagens — “nada mais provinciano do que sair da província” — e agora, doente, só arrisca uma ou outra viagem a Alegrete, onde esteve há pouco para as bodas de prata da irmã.

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— Dessa viagem, trouxe uma mágoa: os amigos de antes estão mortos, servem nas milícias do Senhor. Então, já não tenho com quem conversar. Mas sempre há alguma coisa a fazer. Comer, por exemplo. Que coisa maravilhosa, a comida de campanha. Depois de vários anos, comi doce de abóbora, canjica com leite, batata doce.

O BOÊMIO LÍRICO

Apesar do carinho da cidade, dos temperos especiais da família, Mário Quintana já não sabe viver no interior. E quando lhe perguntam porque saiu de Alegrete, ele responde rápido, com uma frase típica:

— Mas o que podia fazer em Alegrete? Lá, quem não é fazendeiro é boi.

Ele que não fazendeiro bem boi, foi para Porto Alegre ser o poeta das anotações do Caderno H. De coletânea dessas anotações já resultaram dois outros livros, antes desse Caderno H: Coisas e Sapato Florido, um dos livros de maior sucesso de Quintana. Que também publicou: A Rua dos Cataventos, Canções, O Aprendiz de Feiticeiro, Espelho Mágico e Poesias.

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O boêmio lírico e apaixonado pela madrugada é hoje um homem solitário, mas que conserva alguns hábitos da mocidade. O das longas caminhadas a pé, por exemplo, encarando rostos. olhando as fachadas dos prédios.

Preocupado com temas metafísicos, com a cidade devorada pela especulação imobiliária, com o excesso de poetas medíocres e com a crescente desumanização da vida, Mário Quintana se pergunta:

— Quando o homem desaparecer, que será das coisas? Morrerão de mesmice de ser. De ser apenas aquele poste na esquina, aquela fonte sorrateira, a bela tabuleta inutilmente colorida nos relógios sobreviventes... Quando o homem desaparecer, que será das coisas, que será de Deus?

Mas essas são interrogações de noites de insônia. Porque quando o Sol brilha, o céu está azul e poeta está na praça, ele se consola:

— Há sempre, afastada das outras, uma nuvenzinha preguiçosa que ficou sesteando no azul...

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Jornal da Tarde

Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.

Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.

Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.

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