Era para ser uma festa, mas terminou em tragédia. O show promovido pela Rádio Globo com vários artistas no Parque do Carmo em 25 de setembro de 1988 não tinha infra-estrutura e condições para receber as 600 mil pessoas que foram naquele domingo ao “Show da Primavera” para ver as apresentações de Juba e Lula, Angélica, Titãs, Fafá de Belém, Rosana, Grupo Dominó, Yahoo e Tim Maia. O calor a desorganização acabaram em tumulto, feridos e dois garotos afogados num dos lagos do parque na zona leste de São Paulo.
A reportagem de Inês Maria Rodrigues no Jornal da Tarde do dia seguinte detalhava o caos e contava que até os bombeiros foram apedrejados quando acabou a água do caminhão pipa que usavam para tentar refrescar a multidão.
Em meio às imagens da tragédia, a fotógrafa Ana Carolina Fernandes conseguiu, do palco, captar uma das fotos mais emblemáticas de Tim Maia, tocando um agogô com a multidão ao fundo.
“Nem sei quantas músicas vou cantar, tudo depende do pique da moçada”, dizia. Quando saiu, apesar de tudo, estava quase em sem voz.
Leia a íntegra da reportagem de Inês Maria Rodrigues.
Jornal da Tarde - 26 de setembro de 1988
Jornal da Tarde - 26 de setembro de 1988
Show, calor e morte no parque
Era uma promoção de uma rádio, e não houve infra-estrutura para receber a multidão - gente humilde e pobre em busca de um lazer gratuito
Reportagem de Inês Maria Rodrigues
Sem dinheiro, sem água e sem ter o que fazer num domingo de calor repelente, um público-monstro de umas 600 mil pessoas espremeu-se ontem no Parque do Carmo, na zona Leste da cidade, para um show de música que terminou em morte, correria, dezenas de feridos, pedradas e pancadaria.
“A culpa disso é a carência de eventos gratuitos em São Paulo”, dizia Jorge Damião, supervisor de promoções da Rádio Globo, a empresa que aproveitou seu 5º aniversário para montar o espetáculo.
Os organizadores do “Show da Primavera” esperavam no máximo umas 200 mil pessoas para um local que já não conta praticamente com qualquer infraestrutura de grande vulto. Veio o triplo disso e o resultado esteve próximo de um caos.
Já às 10 horas da manhã, preocupados, os locutores da Rádio Globo FM avisaram que não havia lugar algum nos estacionamentos. Tratava-se de um eufemismo: não havia lugar algum sequer nas ruas de acesso, atravancadas por ônibus super-lotados e, principalmente, caminhões com gente apinhando-se nas carrocerias abertas.
Era um público composto sobretudo de gente muito humilde e pobre, sem recursos ou opções de lazer em fins-de-semana. Normalmente ocupado por gente que passa o dia de domingo ali, o Parque do Carmo oferece uma paisagem desolada, sem a proteção de árvores ou serviços dignos de sanitários, assistência médica, distribuição de água ou comida. Havia grande número de vendedores ambulantes nas entradas do local, mas os organizadores não permitiam que latas ou garrafas fossem levadas para dentro.
Apertadas ombro a ombro, as pessoas aguentavam com até certo estoicismo um sol de mais de 30 graus. Sufocados pela massa humana, os responsáveis pelo show não podiam se movimentar e sequer garantir a entrada dos cantores e conjuntos que o público queria ver: Juba e Lula, Angélica, Titãs, Fafá de Belém, Rosana, Grupo Dominó, Yahoo e Tim Maia. Alguns tiveram de caminhar por duas horas, sem sombra à vista, até chegar ao palco.
A confusão começou justamente por culpa do calor. Preocupados, os soldados do Corpo de Bombeiros providenciaram um carro-pipa que passou a despejar água em cima do pessoal, num dos pontos mais distantes do palco. Quando a água acabou, os bombeiros foram apedrejados.
“A falta de água e de sanitários é meu pior problema”, reconhecia, lá pelas três da tarde, o major Romeu Salgado, responsável por um esquema de segurança integrado por mais de 500 homens da Polícia Militar. Até ali, ele já havia registrado mais de 150 detenções, a maior parte delas bate-dores de carteiras.
No tumulto criado pela falta de água, várias pessoas ficaram feridas, inclusive três com fraturas no crânio. Dois garotos, um de 13 e outro de 15 anos, procuraram refresco à sua maneira e acabaram afogados num dos lagos do Parque do Carmo.
A própria PM teve de atender dezenas de pessoas com ferimentos leves causados por pisoteamentos ou simplesmente porque haviam sido prensadas contra paredes, cercas ou cordões de isolamento pela massa humana que queria chegar mais perto dos artistas, ou apenas ter acesso ao “anfiteatro”.
No total, o número de pessoas medicadas chegou aos 800, mais ou menos a lotação completa de um teatro dos grandes. A maioria, por insolação. Uma senhora, à beira da histeria, teve de ser medicada depois de ter tentado agredir um policial. Uma moça foi levada para o carro da polícia pelos cabelos, após ofender uma agente feminina. O número de crianças perdidas superava as cinco centenas e daria para encher qualquer orfanato.
“Algumas se perderam duas ou trés vezes”, contava o comissário de menores Waldir Bernardo de Carvalho. “Houve falta de organização tanto do pessoal da Rádio Globo como da administração do Parque”.
Os artistas reconheceram logo que público “ia render menos do que podia, devido ao calor e ao cansaço”, comenta, Fafá de Belém, algo nostálgica: “Toda essa gente me faz lembrar os comícios pelas diretas”.
De fato, a massa não apresentava aspecto de quem estava disposto a vibrar com os artistas - alguns deles, como cantora Rosana, rouca e gripada. Já às nove da manhã, aliás, o primeiro grupo a se apresentar, a dupla Juba e Lula, do Armação Ilimitada (leia-se Kadu Moliterno e André di Biasi) acharam a platéia “morna e sem ânimo”. A música “Polícia”, por sua vez, deixou aos quase 700 policiais sem graça, mas muitos cantaram juntos.
Tini Maia não perdeu a chance de exercitar o seu vozeirão nem nos camarins. “Nem sei quantas músicas vou cantar, tudo depende do pique da moçada”, dizia. Quando saiu, apesar de tudo, estava quase sem voz
Jornal da Tarde
Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira. Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo. Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.
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