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Julgamento do STF sobre maconha mostra ‘insanidade do modelo punitivista’, diz advogado

Pesquisador da Lei de Drogas afirma que Supremo fez diagnóstico correto, mas vê decisão ‘tímida’ se comparada a encaminhamentos dados por outras Cortes, como de Argentina e Colômbia

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Foto do author Marcio Dolzan
Atualização:
Foto: iea.usp.br
Entrevista comCristiano MaronnaAdvogado e diretor do JUSTA. Autor do livro “Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade”.

Diretor do JUSTA, organização social que atua no campo da economia política da Justiça, Cristiano Maronna avalia como positivo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que descriminaliza o porte de maconha para uso pessoal. Ainda assim, ele vê como um avanço “tímido”.

“É uma decisão muito recuada quando se compara com decisões dadas no mesmo tema por outras Cortes Supremas, como as de Argentina, Colômbia, México, África do Sul”, enumera, em entrevista ao Estadão. “O diagnóstico do Supremo foi correto, mas o encaminhamento não vai ser eficiente.”

O pesquisador rechaça a tese, difundida por críticos da decisão, de que a definição do parâmetro de 40 gramas para definir um usuário vai facilitar a venda de drogas. “O tráfico hoje não tem nenhuma dificuldade. Dizer que vai facilitar algo que já é realidade não faz sentido nenhum. É só fazer uma pesquisa nas bocas de fumo, e ver se antes da decisão do Supremo faltou maconha, cocaína e tráfico.”

Leia os principais trechos da entrevista:

Como avalia a decisão do STF que considerou o porte de maconha como ato ilícito, e não um crime?

A decisão foi positiva, no sentido de que se o Supremo tivesse, por maioria, declarado a constitucionalidade do artigo 28 (da Lei de Drogas), seria sem dúvida um resultado pior. Mas considero que a decisão foi tímida, que o alcance será pequeno. É uma decisão recuada quando se compara com decisões dadas no mesmo tema por outras Cortes Supremas, como as de Argentina, Colômbia, México e África do Sul.

Ao restringir apenas a maconha, ao manter a ilegalidade no plano administrativo e permitir que a presunção de uso pessoal seja afastada apenas com base no testemunho policial e nas provas elaboradas, o Supremo chancela o estado de coisas hoje, que é ruim, situação em que usuários são tratados como traficantes. O diagnóstico do Supremo foi correto, mas o encaminhamento não vai ser eficiente.

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Qual será a consequência prática dessa decisão?

Ainda é cedo para avaliar, porque o Supremo tomou uma série de medidas. Primeiro, definiu que esse é um regime provisório, o que chama de regra de transição, enquanto o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ou o Congresso não legislar sobre o tema.

Bastante sintomático é o fato de que, mesmo depois da decisão, uma pessoa flagrada com pequena quantidade de drogas e classificada como usuária será encaminhada à delegacia de polícia. O delegado vai lavrar um termo circunstanciado, e essa pessoa será encaminhada ao Juizado Especial Criminal.

Ou seja, não muda nada do que era antes da decisão. Além disso, o Supremo delegou ao CNJ a atribuição de elaborar um rito procedimental para que situações de uso pessoal sejam tratadas. Eles chegaram a dizer também sobre a necessidade de criação de um órgão administrativo, como em Portugal. Eles miraram e se basearam muito em Portugal, onde existem as Juntas de Dissuasão da Toxicodependência, organismo não penal multidisciplinar que acolhe pessoas flagradas com drogas e analisa caso a caso.

Lá, quando não se identifica um problema relacionado a um usuário de drogas, a pessoa paga multa, presta serviço comunitário, e é liberada. Quando se identifica um problema, é encaminhada para o equipamento público que equivaleria à rede de atenção psicossocial que existe no SUS.

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O Supremo, de alguma forma, está tentando desenhar política pública, que é uma questão problemática também. Não acho que isso é errado, porque temos um Congresso e um Executivo que estão se omitindo deliberadamente para avançar na política de drogas. Diante dessa omissão deliberada, dolosa, concordo que o Supremo não pode se omitir. Mas é uma questão complexa, delicada.

O Supremo está ditando as diretrizes para a política pública de drogas. E o Congresso tem autonomia. Pode dizer: ‘não vou criar nenhum órgão administrativo, não acho que é necessário’.

O Supremo diz que tem de fixar critério objetivo: 40 gramas de maconha. E o próprio Supremo reconhece que é uma decisão provisória e que o Congresso pode rever, inclusive nas teses fixadas. Vamos ver como o Congresso vai reagir, tendo em vista que o Senado já aprovou a PEC 45 e a Câmara dos Deputados está em vias de avançar na análise da PEC, com o oposto do que o Supremo diz.

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A PEC 45 diz que deve ser criminalizada a posse de qualquer quantidade de drogas sem fixação de critérios objetivos. E os critérios previstos na Lei de Drogas, o parágrafo 2º do artigo 28, diz que o juiz, para determinar se a finalidade da posse é uso pessoal, deve levar em conta o modo de acondicionamento, a existência de variedade de drogas, a natureza, a quantidade, as circunstâncias da apreensão etc. Há aí indicação de que a orientação do Supremo é uma; e a do Congresso será diametralmente oposta.

Porte de maconha não poderá exceder a quantidade de 40 gramas para ser considerado consumo pessoal, segundo o Supremo Foto: Adobe Stock

Esse confronto entre os poderes não é exatamente novidade quando se analisa o Direito Comparado. Na Colômbia, isso aconteceu. A Suprema Corte declarou inconstitucional a criminalização da posse de drogas para uso pessoal, e o Congresso reagiu aprovando uma emenda à Constituição que obrigava a criminalização de qualquer quantidade de drogas - mais ou menos nos termos do que propõe a PEC 45.

E a Suprema Corte colombiana declarou inconstitucional a emenda à Constituição aprovada. Aqui me parece que o roteiro será o mesmo. Porque se o Supremo, por maioria, entendeu que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional porque viola a intimidade, a vida privada, a proporcionalidade, as mesmas razões levarão o Supremo a entender a PEC 45 inconstitucional.

Há uma única variável que merece nossa atenção: a maioria formada foi apertada, foram seis votos a cinco. Agora a composição da Corte mudou, o ministro Flavio Dino, que não votou nessa votação, me parece ter um conceito diferente.

Esse cenário todo não abre uma insegurança jurídica? Como isso se define daqui para a frente?

Existe uma insegurança jurídica enorme, e quem causa essa insegurança é o Congresso. Ele está se colocando como um poder que paira acima dos demais poderes. O Congresso está tentando emparedar o Supremo, coagir o Supremo no sentido de limitar a competência que o Supremo tem de realizar o controle de constitucionalidade de normas jurídicas.

De acordo com a nossa Constituição, compete ao Congresso a criação das leis, mas ao Supremo dizer se as leis criadas pelo Congresso são ou não constitucionais. Isso está na Constituição. Só que o Congresso, não é a primeira vez que isso acontece, tenta dar uma espécie de drible da vaca no Supremo.

No caso das Vaquejadas, isso já aconteceu. O Supremo declarou inconstitucional uma lei estadual que regulava a vaquejada, que se tratava de crueldade contra animais. O que o Congresso fez? Aprovou uma emenda à Constituição transformando a vaquejada num patrimônio cultural, manifestação cultural, que é uma forma de desfazer a decisão do Supremo. A mesma coisa aconteceu no caso do Marco Temporal das terras indígenas. Logo depois de o Supremo chegar a uma decisão, o Congresso foi lá e legislou em outro sentido. Isso é ruim para a democracia.

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A ideia de Estado de Direito pressupõe convivência harmônica entre os poderes independentes. O que estamos assistindo é um Congresso hipertrofiado que busca esvaziar os poderes do Executivo e do Legislativo.

A definição do limite em 40 gramas vai alterar a abordagem policial? E como fica a questão do enquadramento em relação ao tráfico?

Nós vamos ter que aguardar para verificar de que modo essa decisão vai impactar na atuação das polícias. Porque a grande questão é essa, não sendo mais crime, mas ainda sendo uma conduta ilegal. A polícia, quando flagrar pessoas usando maconha, vai abordá-las, vai encaminhá-las à delegacia para a lavratura de um termo circunstanciado? No princípio, a polícia tem legitimidade, por exemplo, para impor uma multa, que é também uma infração de trânsito. A polícia atua prioritariamente na repressão ao crime, mas qualquer ilegalidade pode ser objeto da atuação policial. Eu acho que seria um contrassenso a polícia perder tempo com infração administrativa. Tem um monte de crime grave acontecendo, roubo, estupro, sequestro, homicídio, que deveria ser a prioridade da atuação da polícia. Agora, conhecendo a realidade como nós conhecemos, eu acho muito difícil que as coisas mudem se não houver uma iniciativa política direcionada a essa mudança. A questão dos critérios objetivos precisa ter um impacto especialmente no Judiciário, que é quem chancela essa prática de enquadrar usuários como traficantes. Inclusive, eu tenho visto nas redes sociais promotores de Justiça espalhando fake news. Eu vi um deles dizendo “agora, depois da decisão do Supremo, quem for flagrado com a quantidade acima de 40 gramas de maconha deve ser presumido traficante”. E a decisão do Supremo não diz isso. A decisão do Supremo é clara ao dizer que o critério fundamental para caracterizar o tráfico é a prova da finalidade mercantil. O que o Supremo está dizendo com todas as letras é que pessoas flagradas com drogas devem ser presumidas usuárias.

O uso pessoal sempre tem que ser presumido. O critério objetivo é uma ferramenta auxiliar, mas ele não é um critério absoluto. Tanto é assim que pode haver tráfico com a quantidade abaixo de 40 gramas, e o Supremo disse que pode haver uso com a quantidade acima de 40 gramas. O centro do argumento aprovado na tese do Supremo é a presunção de que sempre é de uso pessoal, a não ser casos excepcionais. A pessoa foi flagrada com 6 toneladas de maconha? Aí não dá pra falar em uso pessoal. Mas como a gente sabe que a grande maioria dos casos de processo por tráfico de drogas envolve quantidades compatíveis com o uso pessoal, é importante deixar claro qual foi a tese.

Em relação a essa definição dos 40 gramas, o parâmetro é o mesmo que vem sendo usado no Uruguai. Ele serve também para o contexto de Brasil?

Eu entendo que o ideal seria uma quantidade mais elevada. Eu defendo 200 gramas, como é o caso da Espanha, por exemplo. E eu defendo que essa presunção seja absoluta, não relativa. Por quê? Porque o problema que existe hoje no Brasil em relação ao tráfico de drogas é a baixa qualidade da investigação. A investigação sobre tráfico é praticamente inexistente; 90% dos casos de tráfico de drogas tem origem em abordagens policiais realizadas sem prévia investigação, sem trabalho de inteligência. O JUSTA tem uma pesquisa que mostra que, no orçamento dos estados destinados à polícia, 66% vai para a Polícia Militar. É uma Polícia Militar hipertrofiada, hiperfinanciada, que tenta ocupar o espaço da Polícia Civil. A Polícia Civil e a polícia técnico-científica são subfinanciadas, estão sucateadas, falta material humano, falta equipamento. A baixa qualidade da investigação criminal decorre dessa opção política que se reflete no orçamento. O Sou da Paz fez uma pesquisa há pouco tempo mostrando que de cada três homicídios dolosos no Brasil, apenas um tem a sua autoria esclarecida. Se no caso do homicídio, dois terços dos crimes ficam impunes, o que dirá dos outros crimes? Quando a gente percebe que 90% dos casos de tráfico começam com abordagem policial sem investigação, a gente percebe que é tudo feito sem planejamento. Enquanto não mudar essa lógica, enquanto não houver uma investigação criminal qualificada que permita a efetiva comprovação do tráfico, usuários vão ser tratados como traficantes. Por isso que eu acho que não dá pra cravar o que vai acontecer daqui por diante, porque tudo vai depender de como o judiciário vai se comportar. Se o judiciário introjetar a tese, compreendendo que toda a posse de drogas é, em princípio, uso pessoal, e só quando houver prova idônea e suficiente de tráfico pode haver acusação e condenação por tráfico, isso vai ser uma revolução. Se o judiciário ignorar a tese aplicada pelo Supremo e continuar agindo como vem agindo desde a lei de 2006, usuários vão continuar enchendo as prisões, acusados e condenados por tráfico.

Alguns críticos apontam que o parâmetro definido em 40 gramas vai facilitar o trabalho dos traficantes, porque possibilitaria a existência de “mini mulas”, traficantes com quantidade de drogas dentro do limite. Como vê essa crítica?

Acho esse um argumento completamente improcedente, porque ignora a realidade. O tráfico hoje não tem nenhuma dificuldade. Dizer que vai facilitar algo que já é realidade não faz sentido nenhum. É só fazer uma pesquisa nas bocas de fumo e ver se antes da decisão do Supremo faltou maconha, cocaína e tráfico.

É um argumento ridículo. Por que a qualidade da investigação criminal é tão baixa? Por que os grandes traficantes, aqueles que enriquecem com negócio de tráfico, bilionários, nunca são presos? Por que a gente olha para a prisão e vê que as pessoas condenadas por tráfico são pretos, pobres, miseráveis? São essas as perguntas que devem ser feitas para essas pessoas que estão dizendo essa bobagem.

Como é que explicam a realidade da repressão ao tráfico de drogas se só pega quem atua na franja? Se só pega o pequeno traficante? Se só pega aquele que é facilmente descartado? Dizer que vai facilitar o tráfico é uma afirmação covarde, em busca de encobrir o que realmente importa discutir, que é o fracasso absoluto desse modelo repressivo, que encarcera em massa e não consegue fazer cócegas no tráfico, enquanto as drogas continuam circulando de forma praticamente livre.

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Por que é tão difícil se chegar a um fator comum nessa questão envolvendo as drogas no Brasil?

Porque depois de sediar a Copa do Mundo em 2014 e a Olimpíada em 2016, o Brasil desde 2018 vem sediando o retorno da Idade Média. Infelizmente, essa se tornou uma bandeira política. Quando a gente fala de segurança pública, de política criminal, a guerra às drogas é o pilar central dessa política, é ‘a guerra contra o crime’, é o enfrentamento violento, é o ‘bandido bom, é bandido morto’.

Existe um discurso predominante, que não tem base científica, que demoniza as drogas, enquanto bebidas alcoólicas, tabaco e fármacos são consumidos livremente. Esse momento do julgamento foi positivo, porque permitiu debate mais qualificado, que trouxesse evidências científicas mostrando a insanidade que é esse modelo punitivista. E o julgamento do Supremo, embora tenha tido resultado muito aquém do esperado, do ponto de vista do debate e do reconhecimento do fracasso do modelo, cumpriu papel importante.

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