Mesmo com a queda de roubos praticados durante a pandemia, o Brasil registrou 6.416 mortes durante ações policiais em 2020. É o maior patamar de letalidade desde 2013, início da série histórica, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A maior parcela das vítimas era homem, negro e tinha entre 12 e 29 anos.
O número de suspeitos mortos no ano passado representa variação positiva de 1% em relação a 2019, ano que já havia registrado recorde de mortes decorrentes de forças de segurança no País. A piora da estatística está na contramão do comportamento de crimes patrimoniais, que diminuíram durante o isolamento social contra a covid-19.
Segundo os dados do relatório, o Brasil registrou diminuição de roubos a transeuntes (36,2%), estabelecimentos comerciais (27,1%), veículos (26,9%), cargas (25,4%) e residências (16,6%). "Boa parte das justificativas das polícias para o resultado morte é que houve confronto em ocorrências de crimes patrimoniais", afirma Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum. "O que essas estatísticas estão revelando é que a morte não está diretamente associada à ação do crime, em si, mas ao padrão de trabalho que permaneceu o mesmo."
Apesar do aumento de mortes durante intervenções de forças de segurança, a alta ainda mais acentuada de homicídios comuns fez com que caísse a proporção da letalidade policial no total de mortes violentas do País. Em 2020, a taxa foi de 12,8% – índice inferior aos 13,3% de 2019.
O número de suspeitos que morreram durante a atuação das polícias subiu em 18 Estados, de acordo com o Fórum. Em termos proporcionais, o destaque negativo foi Mato Grosso, que teve aumento de 76% dessas ocorrências. Os agentes de segurança também mataram mais durante o isolamento social em Pernambuco (56,6%), Rio Grande do Sul (48,9%), Tocantins (48,4%) e Bahia (46,5%).
Embora tenha reduzido a letalidade em 31,8%, o Rio segue no primeiro lugar do ranking em números absolutos. Foram 1.245 mortes registradas em 2020, ante 1.814 no ano anterior. Entre os casos, está o do garoto João Pedro Mattos, de 14 anos, vítima de um tiro de fuzil nas costas dentro da própria casa, no Complexo do Salgueiro.
Pesquisadores atribuem a queda no Rio à decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), em junho, de suspender operações policiais em comunidades durante a pandemia. A medida foi confirmada depois em plenário. Nos meses anteriores até então, a tendência do Estado era de aumento de mortes durante ações policiais.
O relatório aponta, ainda, que a Bahia passou a ocupar a segunda posição no total de casos registrados em 2020, assumindo o lugar que em edições anteriores era de São Paulo. Segundo o Fórum, as mortes durante ações saltaram de 773 para 1.137 naquele Estado.
Um dos casos de destaque foi o do miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, o capitão Adriano, baleado pela polícia baiana em fevereiro. Nesta semana, mais de um ano após a ocorrência, o corpo foi exumado a pedido do Ministério Público para tentar esclarecer as circunstâncias da morte.
Terceiro lugar em ocorrências absolutas, São Paulo notificou 814 mortes decorrentes de intervenções policiais no ano passado. O índice representa um recuo de 6,8% em relação aos 867 casos de 2019. No mês passado, a taxa de letalidade de 15 batalhões paulistas – incluindo a Rota – chegou a cair para zero após os homens passarem a trabalhar com câmeras que gravam sem interrupção todo o seu turno de trabalho.
No critério por taxa, o Amapá segue na posição de Estado mais preocupante, com 13 casos por 100 mil habitantes. Em seguida, nas piores posições do ranking nacional aparecem Goiás (8,9), Sergipe (8,5), Bahia (7,6) e Rio (7,2).
Apenas quatro unidades federativas ficaram com índice abaixo de um caso para cada 100 habitantes, de acordo com o relatório. Foram elas: Distrito Federal (0,4), Minas (0,6), Mato Grosso do Sul (0,7) e Paraíba (0,9). No Brasil, a média é de 3 por 100 mil.
Negros são maioria entre suspeitos e policiais mortos; mais agentes morreram de covid do que em confrontos
Em relação ao perfil das vítimas, o Fórum indica que 98,4% eram do sexo masculino, 78,9% negros e 76% eram jovens ou adolescentes. Todas essas prevalências são superiores às constatadas nos homicídios comuns. No período, 194 agentes de segurança também foram assassinados.
No grupo de policiais mortos, os negros também são maioria: 62,7%. As vítimas, no entanto, são mais velhas (58,9% tinham entre 30 e 49 anos) e a maior parte morreu em horário de folga (72%).
"Pertinente novamente destacar que os dados disponíveis da Pesquisa Perfil dos Profissionais de Segurança Pública da SENASP (2019) mostram que a composição das polícias brasileiras é de 56,8% de pessoas brancas e 42% de pessoas negras", escreveram as pesquisadoras Cristiane do Socorro Loureiro Lima e Juliana Martins, ao analisar os dados. "Como na população em geral, policiais negros são mais vulneráveis à violência letal."
O levantamento do Fórum aponta, ainda, que em 2020 mais policiais morreram por coronavírus do que durante confrontos no Brasil. Ao todo, 472 agentes foram vítimas da pandemia, de acordo com os dados coletados – mais do que o dobro dos agentes vítimas de violência.
Entre 28 de abril e 28 de maio, os pesquisadores realizaram 6.656 questionários com agentes de segurança. Segundo as informações compiladas na escuta, 85% afirmam ter medo de ser infectado durante o trabalho e 83,1% declararam ter perdido um colega de trabalho, amigo ou familiar para a doença.
Ainda de acordo com as consultas, 62,8% dos agentes disseram se sentir confortável ao pedir para as pessoas colocarem máscara. O índice de sensação de segurança, entretanto, cai em relação a atuar na dispersão de aglomerações (45,8%) ou realizar operações em festas clandestinas (43,5%).
Secretarias dizem aprimorar procedimentos
Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio afirma que as operações seriam "pautadas nos pilares de inteligência, investigação e ação", motivo pelo qual "têm alcançado redução constante em todos os índices de violência". "As ações priorizam sempre a preservação de vidas, tanto de policiais quanto dos cidadãos", diz a pasta.
O governo fluminense afirma, ainda, ser "equívoco afirmar que houve proibição de operação nas comunidades do Rio" pelo STF. "O que houve foi a redução de ações policiais no início da pandemia. Inclusive, tendo como consequência a expansão territorial e de armamento das organizações criminosas, por meio do lucro da venda de drogas", diz. "Todas as operações da Polícia Civil são precedidas de investigações devidamente judicializadas e acompanhadas pelo Ministério Público."
Já a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirma que "a quantidade de pessoas mortas em confronto com policiais em serviço vem caindo de maneira consistente no Estado e é resultado de um forte trabalho de gestão". "Maio de 2021 completou um ano de queda consecutiva neste índice. A redução nos cinco primeiros meses deste ano foi de 34% se comparado a igual período do ano passado."
Segundo o governo paulista, todas as ocorrências que resultam em morte são "analisadas pelas instituições policiais, rigorosamente investigadas e comunicadas ao Ministério Público". "Também são implementadas medidas visando a aprimorar os protocolos e procedimentos operacionais e administrativos."
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia informou que as polícias Civil e Militar investem anualmente em treinamento para uso da força só em caso de necessidade e de forma escalonada, durante operações, abordagens e blitze. “O uso de arma letal é sempre a última opção, utilizada quando existe a necessidade de proteger a vida dos policiais envolvidos no confronto e de inocentes". Disse ainda investigar "de forma rígida" os casos de mortes por agentes. / COLABOROU TAILANE MUNIZ, ESPECIAL PARA O ESTADÃO
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