Este artigo foi publicado neste espaço em julho de 2006. É republicado hoje sem nenhuma alteração. Por duas razões: a primeira, porque como na letra do samba de carnavais de outrora, "recordar é viver"; a segunda, muito mais importante, porque o autor acredita que o texto talvez possa reter certo interesse, à luz da insistência do governo atual num confronto plebiscitário, com foco no passado, em vez de um olhar à frente, como, creio eu, seria melhor para o País, onde há tanto por fazer. Portanto, peço ao eventual leitor que adicione, ao título do artigo e onde mais couber, o ano de 2010."A opinião que tens de tua importância te porá a perder", dizia uma das inscrições nas vigas da biblioteca de Montaigne, cujos Ensaios há séculos encantam seus leitores. O tema da vaidade dos homens lhe era caro. O belo ensaio a ele dedicado começa bem: "Talvez não haja vaidade maior do que sobre ela escrever de forma tão vã." Afinal, sempre vale lembrar o Eclesiastes: vaidade das vaidades, tudo é vaidade.Não sei bem por quê, estas lembranças por vezes me vêm à mente ao ler os pronunciamentos de nosso presidente, cada vez mais encantado consigo mesmo e com o que considera não só como seu superior entendimento das coisas deste mundo, como sua autoproclamada capacidade de transformá-lo. Em arroubo recente, informou-nos que "só Deus conseguiria consertar em quatro anos o que não foi feito em 500 anos". Ele (Lula), por exemplo, precisaria de oito anos para começar a corrigir erros e omissões seculares e pôr o País no rumo certo, deixando uma extraordinária herança a seu sucessor. Mas falemos antes sobre as heranças, já por eles construídas, com que Lula e o PT chegaram a 2002 - e chegam às eleições de 2006. Em 2002, Lula e o PT tinham uma história de mais de 20 anos e, portanto, uma herança que consigo carregavam. Fazia parte dessa herança a ferrenha oposição ao lançamento do Real em 1994, chamado de "pesadelo", de "estelionato eleitoral" e com duração por eles prevista para poucos meses. Fazia parte dessa herança a oposição às mudanças constitucionais que permitiriam ampliar os investimentos privados em infraestrutura. Fazia parte dessa herança a oposição às privatizações, à redução do número de bancos estaduais e à abertura comercial. Fazia parte dessa herança o plebiscito pela suspensão dos pagamentos das dívidas externa e interna e pelo "rompimento" com o FMI. Fazia parte dessa herança a oposição do PT à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no Congresso, a tentativa de derrubá-la no STF e a aprovação, em dezembro de 2000, por seu Diretório Nacional, de texto em que o PT declarava sua posição: "A LRF precisa ser radicalmente modificada porque o preço da responsabilidade fiscal não pode ser a irresponsabilidade social." Fazia parte da herança com que o PT e Lula chegaram a 2002 o programa de governo aprovado em dezembro de 2001 pelo seu congresso nacional, a mais alta instância decisória do partido, e que tinha como subtítulo A ruptura necessária com tudo aquilo que ali estava. Essa herança, como é sabido, teve consequências já em 2002. A taxa de câmbio desvalorizou-se em mais de 50% nos seis meses que antecederam a eleição de outubro (de R$ 2,4 em março/abril para R$ 3,7 por dólar em setembro/outubro), o risco País chegou a multiplicar-se por quatro no período, chegando a 2.400 pontos em outubro, e a inflação em 2002 alcançou 12,5%, tendo mais da metade deste aumento sido registrada nos últimos três meses do ano. Como bem notou Armínio Fraga em longa e excelente entrevista ao jornal Valor (23/6), "a economia estava na UTI, mas isto era a consequência de expectativas em relação ao que o próximo governo faria". E havia fundadas razões para essas expectativas. A gradual desconstrução dessa herança foi um processo, timidamente iniciado em fins de junho de 2002 com carta-compromisso do candidato e ainda não concluído, porque há sérias divisões e ambiguidades não resolvidas no PT, no próprio governo e nas forças que o apoiam, como mostra a experiência pós-Palocci, em particular no que diz respeito à forte expansão recente do gasto público. Passados quatro anos, é cada vez mais claro que a gradual desconstrução da herança construída pelo PT para si próprio em 2002 foi facilitada por três ordens de fatores: um contexto internacional extraordinariamente favorável no quadriênio 2003-2006 (só comparável ao quadriênio 1970-1973, afirma estudo recente do FMI); uma política macroeconômica não-petista (nenhuma das "estrelas econômicas" do PT ocupou qualquer posição relevante na área mais sensível da política macroeconômica, graças ao médico Palocci e ao apoio que este recebeu de Lula até o final de 2005); e uma herança não-maldita de inúmeros avanços institucionais e mudanças estruturais que foram de enorme serventia ao novo governo, nos mais variados setores, inclusive os sociais, e aos quais o governo Lula soube dar continuidade, ainda que pretendendo ter inventado a roda - em alguns casos, com desfaçatez e hipocrisia. Entretanto, o contexto internacional, que permitiu que o Brasil reduzisse extraordinariamente a sua vulnerabilidade externa, não será tão favorável nos próximos quatro anos. O ministro Palocci, assim como pessoas-chave de sua equipe, não mais emprestam seu concurso ao governo. E, nos últimos quatro anos, houve poucos avanços institucionais, andamento de processos de reforma e melhoria de contextos regulatórios - pelo contrário.O discurso sobre "herança maldita", que marcou o imaginário petista, era não só objetivamente equivocado, como trazia seu prazo de validade estampado no rótulo: afinal, em menos de quatro anos o governo Lula se apresentaria ao eleitorado com sua própria herança. E, em modernas democracias, o que se pode - e deve - esperar de um governo é que entregue a seu sucessor um país um pouco melhor do que recebeu de seu antecessor. Como fez FHC, sem achar que a "verdadeira" História do País começou com ele e sua gestão.Qualquer governo, em qualquer país do mundo, não só tem seus próprios erros e acertos, como também constrói sobre avanços alcançados na vigência de administrações anteriores. O governo Lula não foi, não é e não será exceção a esta regra. Reconhecê-lo, difícil como possa parecer para a vaidade humana, é algo que só beneficiaria a governabilidade futura, qualquer que venha a ser o resultado das urnas de outubro. Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC E-mail: malan@estadao.com.br
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