Em novembro de 2019, pouco antes da Covid-19 surgir, fui convidado pela Avanade e pela Adobe para conhecer a "jornada do consumidor de um mundo desintermediado". Faz só cinco anos, ninguém falava ainda de inteligência artificial generativa, apesar de conceitualmente ela já estar lá! Porém o que mais me marcou ali foi descobrir como passaríamos a acreditar muito na tecnologia, às vezes de forma inconsequente. E estamos cada vez mais entregues a isso!
Não é de hoje que obedecemos sem questionar a máquinas. Pedimos ao Waze para nos indicar o caminho que fazemos todos os dias, pois supostamente entregará a rota mais rápida, mesmo que saibamos que nem sempre acerta. Mas quem ousa questionar o cérebro digital?
Desde o lançamento do ChatGPT, há exatos dois anos, acreditamos cada vez mais nas máquinas, mesmo que ainda errem muito! É como se tivéssemos dado à IA o papel de conselheira, terapeuta e vidente. Ao invés de perguntar à vovó qual o melhor chá para dor de barriga, agora perguntamos ao chatbot.
De onde vem tanta confiança?
As máquinas não se cansam, não se distraem, e são incrivelmente rápidas. Além disso, suas respostas se tornam cada vez mais personalizadas aos gostos de cada um de nós. E elas têm acesso a muito do conhecimento da humanidade.
Se já não fosse suficiente, elas não nos julgam, não se entediam e estão sempre dispostas para ajudar. A experiência é tão fluida e convincente, que nem questionamos se o que nos dizem é realmente bom ou só parece ser.
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Talvez seja bom demais para ser verdade! Esses robôs são ferramentas absurdamente poderosas, mas não podemos esquecer que são criados por nós, humanos, programados com nossos valores e preconceitos. E podem ser usados para o bem ou para o mal.
Esse papel de dar respostas transcendentais e nos ajudar a lidar com incertezas da vida tradicionalmente pertence à religião. Mas a sedução da IA cresce tanto, que a tecnologia parece avançar até no terreno do sagrado. Por exemplo, na foto acima, o robô budista Mindar prega sermões com inteligência artificial no templo Kodaiji, em Kyoto (Japão).
Não podemos esquecer que muita gente já toma decisões importantes depois de consultar o ChatGPT, se apaixona por ele e o usa como psicólogo. E precisamos considerar também que, cada vez mais, buscamos soluções fáceis, rápidas e baratas, mesmo para problemas complexos. A IA parece personificar esses desejos, mas, apesar de tantos predicados, devemos avaliar se tanta confiança é saudável.
Em que momento a tecnologia deixa de ser uma ferramenta e passa a ser uma autoridade? Quando a Netflix diz que "esse é o filme perfeito para você", devemos aceitar sem questionamento?
Estamos terceirizando até dilemas morais para a IA. Se chegarmos à Inteligência artificial geral, aquela que funcionará de maneira autônoma, atuando em todas as áreas, como o cérebro humano, será que ela continuará nos servindo, "essa turma insegura e lenta"?
De volta àquele evento em 2019, foram apresentadas simulações de agentes de IA incrivelmente eficientes e autônomos, até mesmo tomando decisões comerciais em nome do usuário. Fiquei maravilhado com suas possibilidades, mas questionei ao porta-voz: que garantia teria de que aquelas decisões seriam sempre boas para o indivíduo, e não privilegiariam interesses dos criadores da IA e de seus parceiros?
A resposta foi filosoficamente interessante: esse tipo de produto só funciona se confiarmos nele. Se repetidamente falhar nas suas escolhas, nós o abandonaremos. É um bom ponto!
Perguntei então quando aquilo estaria pronto. A resposta: em uns cinco anos.
Ou seja: agora!
Como em qualquer relacionamento, confiança é necessária, mas em excesso pode ser prejudicial. Agora estamos confiando de coração em algo a que atribuímos características humanas, mas não é gente!
Não faz sentido ignorar todo esse poder tecnológico. Sim, precisaremos aprender a dosar nossa confiança nele. Não é nada trivial, mas temos que superar esse desafio para que esse relacionamento com as máquinas seja positivo e seguro.
Só não podemos esquecer quem é que manda.
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