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Opinião | "Cultura do cancelamento" enfrenta a Justiça com a força das redes sociais

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Foto do author Paulo Silvestre
O anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demônio Crowley (David Tennant), protagonistas da série "Belas Maldições" - Foto: reprodução

Fãs da série "Belas Maldições" ("Good Omens") ficaram desolados com o anúncio de que sua terceira temporada seria reduzida a um único episódio de 90 minutos, encerrando prematuramente esse sucesso do Amazon Prime Video. A decisão veio devido a graves acusações de abuso sexual contra Neil Gaiman, produtor e coautor da obra original, trazendo à tona questões sobre a "cultura do cancelamento", um dos efeitos mais nefastos das redes sociais.

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É importante que fique claro que isto não é uma defesa de Gaiman. As denúncias contra ele são graves e os indícios, consistentes. Se comprovadas, devem resultar na condenação apropriada.

Por outro lado, o caso ainda está em investigação e o autor sequer foi indiciado. Mesmo assim, já foi julgado e condenado pelo "Tribunal da Internet". Como pena, sua reputação ficou seriamente comprometida, e vários projetos seus, como as séries "Belas Maldições" e "Sandman", foram interrompidos ou abreviados.

A "cultura do cancelamento" contraria a presunção de inocência, um princípio fundamental em muitos sistemas legais. No Brasil, a Constituição estabelece, no artigo 5º, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Isso garante que um acusado seja tratado como inocente até que sua culpa seja comprovada em um julgamento justo e definitivo.

Engana-se quem pensa que apenas celebridades passam por isso. Como as redes sociais se beneficiam da polarização e do ódio, sem assumir responsabilidades pelo que distribuem, o fenômeno cresce e pode afetar qualquer pessoa. Entender esse mecanismo tornou-se essencial para autopreservação no ambiente digital.

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Veja esse artigo em vídeo:


Gaiman enfrenta denúncias de oito mulheres. A única com o nome revelado é Scarlett Pavlovich, ex-babá do filho de Gaiman, que acusa o autor e sua ex-esposa Amanda Palmer de estupro e tráfico humano. Ele nega tudo, afirmando que todas as relações sexuais que teve foram consensuais e que as acusações visam acordos financeiros.

Dois casos relativamente recentes com famosos ilustram como a "cultura do cancelamento" pode prejudicar muito suas vidas, mesmo quando acabam inocentados na Justiça. Um deles foi o ator Kevin Spacey, absolvido em 2023 de nove acusações de crimes sexuais no Reino Unido. Outro foi o ator Johnny Depp, que venceu o processo contra a ex-esposa, a também atriz Amber Heard, que o acusava de abusos físicos e emocionais. Mesmo assim, ambos continuam com dificuldades profissionais.

Esses exemplos demonstram como a "cultura do cancelamento" vem substituindo os devidos processos legais. Diferente do Judiciário, o "Tribunal da Internet" opera por emoções e achismos, sem considerar todas as evidências ou permitir defesa. Quando a opinião pública se torna juíza e executora, a presunção de inocência some, e as punições são aplicadas imediatamente, muitas vezes de forma irreversível.

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A situação se agrava porque empresas associadas aos acusados vêm se apavorando com o risco de suas próprias reputações serem afetadas. Pressionadas pela opinião pública, frequentemente cancelam contratos antes de qualquer conclusão das investigações oficiais. Assim, a mera acusação torna-se suficiente para destruir carreiras, independentemente da veracidade dos fatos.

Entre os efeitos mais nocivos dos "cancelamentos", está a inibição do debate democrático, silenciando vozes discordantes, criando medo e autocensura. Isso impossibilita diálogos saudáveis, o que frequentemente resulta em injustiças e punições desproporcionais. Em vez de promover a resolução construtiva de conflitos, prioriza o castigo e a exclusão, minando a confiança nas instituições da sociedade.

Eles também causam impactos devastadores na saúde mental. Ansiedade, depressão e isolamento social são consequências comuns para os alvos da fúria coletiva nas redes sociais, com danos psicológicos duradouros. Sem análise aprofundada, pessoas inocentes podem ter suas vidas destruídas por acusações falsas.

 

Recuperação difícil

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Recuperar-se de um "cancelamento" é um processo árduo e frequentemente incompleto. Mesmo quando inocentada judicialmente, a pessoa enfrenta desafios significativos para restaurar sua imagem e carreira.

A reabilitação exige tempo e esforço, envolvendo realizações e entrevistas para reconstruir a reputação. Ainda assim, a memória das denúncias afeta permanentemente como a pessoa é vista. No âmbito profissional, projetos podem não ser retomados e parcerias podem ser irrecuperáveis. Reconstruir a carreira significa frequentemente começar do zero, enfrentando ceticismo e desconfiança constantes.

Como já foi dito, apesar desses exemplos reluzentes, um "cancelamento" pode vitimar qualquer pessoa, e igualmente lhe causar danos profundos. Funcionários podem ser demitidos, estudantes podem ser expulsos e pequenos negócios podem ser boicotados por acusações não-verificadas. Por isso, todos precisam aprender a se proteger disso, o que envolve cuidado ao se expressar. Ser claro ao se comunicar e pensar antes de falar são práticas essenciais para evitar mal-entendidos no cotidiano.

Desenvolver empatia e uma escuta ativa ajudam a compreender diferentes perspectivas, reduzindo o risco de ofensas involuntárias. É também importante ter cuidado com piadas e comentários controversos, avaliando seu potencial ofensivo.

Em um mundo com redes sociais controlando nossas vidas, a gestão da reputação online tornou-se crucial. Monitorar o que é dito sobre você nessas plataformas e responder imediatamente a rumores podem evitar sérias dores de cabeça. Além disso, construir relacionamentos positivos com influenciadores e formadores de opinião ajuda a mitigar crises. Uma imagem pública coerente e empática serve como prevenção.

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Por tudo isso, esta destruição de reputações representa uma injustiça que deve preocupar a todos. O "efeito manada" cria multidões dispostas a destruir alguém apenas pelo que "se ouviu dizer". O "cancelamento" é uma ferramenta de intolerância.

Combater essa cultura não significa defender comportamentos prejudiciais, mas, sim, um processo justo, baseado em evidências e no respeito aos direitos fundamentais. Cabe a cada um de nós, às redes sociais e à sociedade promover um ambiente digital mais transparente e responsável, onde acusações sejam tratadas com seriedade, mas também com o cuidado que a Justiça exige.

 

Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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