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Opinião | Desinformação pode matar, e ninguém está imune a isso

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Foto do author Paulo Silvestre
Capa do sensacionalista "Notícias Populares", de 31 de março de 1994, destaca uma notícia falsa sobre a Escola Base - Foto: reprodução

Você sabe quem foi Fabiane Maria de Jesus? Ela não era uma celebridade ou personagem histórica, mas essa dona de casa foi a primeira vítima fatal de linchamentos morais nas redes sociais no Brasil. Foi assassinada no Guarujá, em maio de 2014, graças a um boato no Facebook, simplesmente por ter sido confundida com uma mulher que supostamente estaria sequestrando crianças para rituais macabros, mas que nunca existiu.

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Desde então, essa prática ficou ainda mais comum, atingindo tanto famosos quanto anônimos ao redor do mundo. Ganhou até um nome -"cultura do cancelamento"- e tornou-se verbo, referindo-se ao ato de boicotar social ou profissionalmente alguém, com o objetivo de causar o máximo de dano à vítima.

Infelizmente, a prática encontrou terreno fértil no Brasil. Pesquisa sobre o tema divulgada pelo Instituto Liberdade Digital, em dezembro de 2021, indicou que 33% dos entrevistados consideravam essa prática correta, enquanto outros 33% a desaprovavam e 34% não souberam responder.

É válido questionar o que leva alguém a se juntar a uma multidão para atacar uma pessoa, muitas vezes desconhecida, com base em acusações não-comprovadas, podendo até resultar em violência. Isso pode vir de um desejo de justiça e responsabilização por atos considerados errados, ainda que por meio de um "bode expiatório". Também pode ser explicado por uma exigência de alguém reconhecer seus erros, principalmente se for uma celebridade.

Mas as redes sociais amplificaram certos aspectos desse comportamento. Muitas pessoas "cancelam" alguém para simplesmente sentir-se parte de um movimento nessas plataformas, para ganhar atenção ou até para ter seus valores confirmados pelo grupo. Esses comportamentos estão intimamente ligados à dinâmica desses serviços, que lucram ao juntar pessoas com ideias semelhantes, especialmente se envolverem sentimentos extremos.

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Casos assim já existiam antes das redes sociais, mas eram raros. Um dos mais emblemáticos foi o da Escola Base. Em março de 1994, os donos dessa pequena escola infantil, que ficava no bairro paulistano da Aclimação, uma professora e o motorista do transporte escolar foram acusados por algumas mães de abusar sexualmente de alunos de quatro anos. O delegado responsável pelo caso, antes de receber o laudo do IML, divulgou a acusação para a imprensa como fato comprovado, e isso recebeu amplo destaque na mídia. Apenas a TV Cultura e o Diário Popular não fizeram isso, pois seus editores entenderam corretamente que havia algo errado na história.

Como resultado, a escola foi depredada e os acusados tiveram que mudar de cidade, pois foram ameaçados de morte. O laudo definitivo comprovou que nunca houve abuso: as crianças tiveram apenas diarreia. Embora o caso tenha sido arquivado por falta de provas, o estrago já estava feito.

A "cultura do cancelamento" deve ser combatida. Muitas pessoas sentem segurança e até uma satisfação perversa ao "cancelar" alguém. Mas precisam entender que, se hoje acusam, julgam e condenam, amanhã podem sofrer o mesmo rito sumário e injusto.

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Se todos agirem sem restrições, a ordem rapidamente dá lugar ao caos. Mesmo se o acusado for efetivamente culpado, um "cancelamento" nunca é justiça, e sim justiçamento, algo que não cabe em uma sociedade organizada.

No caso de Fabiane, cinco homens foram condenados, com penas entre 26 e 40 anos de prisão. Já para as vítimas do caso da Escola Base, a justiça nunca chegou: eles desenvolveram vários problemas de saúde mental e física, e morreram pobres, aguardando reparações do Estado e de veículos de comunicação que nunca vieram.

Casos como esses nos forçam a refletir sobre que tipo de sociedade queremos para nós e para nossos filhos. Se as leis puderem ser substituídas por uma fúria difusa, ninguém estará verdadeiramente seguro.


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Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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