Há um temor de que a adoção da inteligência artificial na educação torne o professor obsoleto. Isso é uma bobagem: a tecnologia digital pode ajudar muito o processo pedagógico, e não é de hoje! Mas uma digitalização da escola mal planejada e sem considerar o protagonismo dos docentes é um problema real que agrava o crescente desprestígio de décadas dos mestres, ao minar sua autonomia e até autoridade na sala de aula.
Não importa qual a ferramenta usada (e a IA é apenas isso): o professor deve se manter no papel central da educação. E para ter sucesso em sua nobre tarefa, deve ser incentivado a exercitar sua humanidade, para tocar a vida dos seus estudantes.
Infelizmente o Brasil é pródigo em fazer o contrário: desestimular os docentes abaixo de qualquer assoalho moral!
O assunto ganhou de novo as manchetes nos últimos dias com a proposta do secretário da Educação de São Paulo, Renato Feder, de se valer do ChatGPT na preparação dos slides que os professores das escolas estaduais paulistas usam como material didático. Já debatemos nesse espaço os riscos consideráveis em que isso implica, então me concentrarei agora em como a ideia impacta os docentes.
Mesmo que o material do governo paulista fosse de alta qualidade (e há controvérsias nisso), a orientação para que os professores o utilizem pode servir como "muleta" para profissionais com formação deficiente, desmotivados, sobrecarregados, sem apoio profissional e mal remunerados.
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Diante desse cenário desolador, um punhado de slides com um plano de aula "mastigado" parece uma boa ideia. Criados sob medida para as avaliações nacionais, como o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), os únicos verdadeiramente beneficiados com isso são as autoridades, que colhem dividendos políticos de alunos "adestrados" para tirarem boas notas nessas provas.
Eles aprendem cada vez menos, com professores trocando o papel de mediador que conduz os estudantes no processo de aprendizagem pelo de mero "aplicador de conteúdo".
Isso é uma tragédia!
Vale lembrar que Feder, um empresário do setor de tecnologia, tentou no ano passado eliminar os livros didáticos das escolas estaduais, restringindo os professores aos seus slides. A ideia só não vingou por uma enxurrada de protestos da sociedade.
Educar não significa abrir a cabeça dos estudantes e despejar, de maneira descuidada, o conteúdo das disciplinas. Naturalmente os professores devem ensinar esses conteúdos, mas de uma maneira que envolva os alunos para que eles aprendam aquilo, ao invés de apenas decorar.
Mas a educação também envolve criar cidadãos conscientes que farão valer seus direitos e não fugirão de seus deveres. Serão pessoas com senso crítico aguçado, vivendo harmoniosamente em sociedade, sabendo trabalhar em equipe e se comunicar.
Não há lugar melhor que a escola para se aprender isso. E não há ninguém melhor para essa tarefa que um professor motivado e bem-preparado.
Enquanto pensava nesse artigo, lembrei-me do filme "Ao Mestre, Com Carinho", estrelado em 1967 pelo saudoso Sidney Poitier, como Mark Thackeray. Engenheiro desempregado, ele decide dar aulas a estudantes indisciplinados em uma escola do bairro operário londrino de East End. Apesar dos esforços dos alunos para fazê-lo desistir, o professor cria um inesperado vínculo com os jovens, que acabam se afeiçoando ao mestre. Isso só aconteceu graças a sua humanidade!
Alguns podem achar que o roteiro é exagerado, de outra época e cultura. Podem dizer que aquilo nunca aconteceria no Brasil atual, pois não passa de uma ficção, e nosso tecido social está esgarçado.
Talvez! Mas sou professor e filho de professores, e já presenciei muitas histórias inspiradoras entre docentes e estudantes. Tudo é possível!
Logo, a tecnologia é muito bem-vinda à educação, mas de pouco servirá enquanto os professores não se sentirem valorizados social e profissionalmente, algo hoje muitíssimo distante de sua realidade.
Talvez o governo devesse investir mais nas pessoas e menos nas máquinas.
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