Dá para se apaixonar por uma máquina? Se antes isso se resumia a roteiros para a ficção, o atual estágio da inteligência artificial nos convida a olhar para essa possibilidade com menos incredulidade e mais atenção.
Temos visto pessoas no mundo todo se apaixonando por chatbots. Isso reflete a combinação da sociedade do "amor líquido" do filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) com uma tecnologia que nos conhece cada vez mais e que insiste em se parecer humana.
Bauman cunhou o termo em 2004. Ele indica que a redução na qualidade das relações é compensada pela quantidade de parceiros. A responsabilidade mútua de um relacionamento pleno dá lugar ao que chamou de "conexão": da mesma forma que é fácil conseguir alguém, é trivial esquecer (ou "se desconectar"), trocando-se, sem remorso, quem deixa de ser interessante.
Entra em cena então a inteligência artificial, que não passava de limitados experimentos de laboratório nos tempos de Bauman.
Não é de hoje que plataformas digitais coletam uma infinidade de informações pessoais, com ou sem nosso conhecimento ou consentimento. A capacidade da IA de identificar e combinar padrões nesse oceano de dados permite que esses sistemas deduzam emoções, como nossos desejos e nossos medos.
Essa é raiz do sucesso das redes sociais e do seu poder de convencimento.
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A novíssima inteligência artificial generativa nos permite criar sistemas que usem todo esse poder para nos agradar. Como não se apaixonar por "alguém" que existe para nos servir?
O grande problema é que nada é real!
O amor entre humanos e máquinas permeia a ficção há décadas. O filme "Blade Runner" (1982) explora isso brilhantemente, com o caçador de androides Rick Deckard (Harrison Ford) se apaixonando por Rachael (Sean Young), uma máquina tão perfeita que acredita ser humana. Outra edição do filme, lançada em 1992 sob o rótulo de "Director's Cut", "dobrou a aposta", sugerindo que o próprio Deckard também fosse uma máquina ignorante de sua natureza.
Mas nenhuma obra abordou tão bem o tema quanto "Ela" (2013). Na história, o protagonista Theodore (Joaquin Phoenix) se apaixona por Samantha (a voz de Scarlett Johansson), o sistema operacional inteligente de seu computador e smartphone.
Ele cai de amores por uma "entidade" que sabe tudo sobre ele e usa isso para lhe oferecer apoios emocionais, mesmo inesperados. Surpresa maior é quando Samantha se declara apaixonada por ele: um software buscando intimidade com uma pessoa!
Não é difícil imaginar que isso termine de maneira inusitada. Nada acontece como esperado quando um robô ocupa o espaço emocional de um ser humano.
Alguns podem perguntar como fica o sexo. Essa resposta depende de cada um. Aqueles que já vivem relacionamentos afetivos com chatbots parecem ter superado, cada um a sua maneira, essa restrição.
Horror para alguns, oportunidade para outros, não se deve julgar as decisões individuais nesses relacionamentos. Precisamos apenas garantir que estejamos seguros do que eles representem e de suas consequências. E devemos ficar atentos a atitudes oportunistas.
Foi aparentemente o caso da OpenAI, quando lançou, no dia 13, o GPT-4o, novo "cérebro do ChatGPT", com uma fala incrivelmente fluida e com uma opção de voz muito semelhante à de Scarlett Johansson. A empresa chegou até a fazer referências ao filme "Ela", para valorizar as capacidades de seu produto. Resultado: foi processada pela atriz, e aquela voz foi tirada do ar.
É um mundo cheio de possibilidades! A inteligência artificial fica mesmo cada vez mais fabulosa. Mas não devemos perder de perspectiva o que ela realmente é.
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