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Opinião | Quais os limites do direito de ser esquecido e de não ser encontrado?

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Will Smith tenta fugir de uma perseguição implacável do governo dos EUA, no filme "Inimigo do Estado" (1998) - Foto: reprodução

Há pelo menos uma década, o mundo debate o chamado "direito ao esquecimento": algumas pessoas desejam que informações antigas sobre elas que lhes provoquem sofrimentos desnecessários, ainda que verídicas, não sejam mais expostas publicamente. Agora, com o avanço da inteligência artificial, da visão computacional e das câmeras, temos que discutir o "direito de não ser encontrado" contra uma vigilância permanente capaz de criar grande angústia e transtornos.

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O "direito ao esquecimento" tem sido invocado por pessoas que cumpriram penas e desejam evitar que seus crimes sejam relembrados, por aquelas que foram inocentadas judicialmente, por familiares de vítimas de crimes que pedem que eventos traumáticos não sejam explorados, e por pessoas que eram famosas, mas decidiram voltar a ser anônimas.

Isso significa remover informações de buscadores e de redes sociais, e impedir que a imprensa relembre tais fatos. No Brasil, ele se apoia em princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, a privacidade, a intimidade e a honra, além do Código Civil, que protege a vida privada, e, em alguns aspectos, na Lei Geral de Proteção de Dados.

São bons argumentos que "protegem" pessoas do próprio passado. Mas as novas tecnologias criam ameaças inéditas ao nosso presente.

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Poucas coisas são mais aterrorizantes que sermos seguidos o tempo todo, sem escapatória, mesmo em nossas vidas privadas. É o conceito que embasa a obra-prima "1984", de George Orwell, que apresenta uma sociedade distópica em que todos os cidadãos são monitorados pelo governo continuamente, até em suas casas.

Ainda não chegamos ao pesadelo orwelliano do Grande Irmão, mas precisamos debater limites sobre o poder de empresas e do Estado de fazer isso, para que a prática não seja normalizada em nossas vidas.

Em menor escala, isso já acontece em nosso cotidiano. É o caso do programa Smart Sampa, que espera chegar a 40 mil câmeras de vigilância espalhadas pela capital paulista. Entre outras coisas, sua proposta previa "rastrear uma pessoa suspeita, monitorando todos os seus movimentos e atividades, por características como cor, face, roupas, forma do corpo, aspectos físicos etc."

A impossibilidade de se escapar da vigilância foi abordada no filme "Inimigo do Estado" (1998). Na história, o advogado Robert Clayton Dean (Will Smith) é envolvido acidentalmente em uma trama política, e sua vida é destruída gratuitamente pelo governo americano. Ele nem consegue se esconder, pois é seguido até por satélites!

O filme antecipou o rastreamento ostensivo, que deixou de ser ficção. Tanto que a Lei da Inteligência Artificial, aprovada pelo Parlamento Europeu em março, restringe o uso de câmeras e proíbe o "policiamento preditivo", em que a IA tenta antecipar um crime por características e ações de indivíduos. Também veta a categorização biométrica, a identificação de emoções em locais públicos, a manipulação de comportamentos e a exploração de vulnerabilidades.

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Assim como no "direito ao esquecimento", agora temos um conflito entre interesses do indivíduo e os da coletividade. No caso do primeiro, ele se choca com a liberdade de expressão e de imprensa, para se noticiar informações de interesse público, além do direito à memória e à verdade histórica.

É preciso avaliar cada caso. Se realmente houver interesse público e o nome da pessoa for relevante para sua compreensão, o "direito ao esquecimento" perde força. Caso contrário, deve ser respeitado.

Já na identificação e monitoramento contínuos, há uma coleta permanente de informações mesmo de pessoas inocentes, que se pressupõe são a maioria. Nesse caso, seus direitos são claramente violados, sem contrapartida de interesse público. Mas uma sociedade apavorada pela violência aceita facilmente que os direitos pessoais sejam solapados.

Isso vale até que o próprio indivíduo seja vítima desse abuso ou de erros do sistema. Nessa hora, fica evidente como essa tecnologia permite a criação de um Estado policialesco, de hipervigilância. E infelizmente governos de diferentes locais e épocas têm um histórico de profundos abusos contra os próprios cidadãos.

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Com tudo isso, talvez mais importante que o direito de sermos esquecidos é o de não se criar elementos para sermos lembrados indevidamente.


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Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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