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Mãe dos rappers Emicida e Fióti, dona Jacira resgata memórias em novo podcast; ouça

Artista plástica e escritora fala sobre suas vivências, costumes ancestrais e mostra que já lutava contra o racismo num tempo em que discussão ficava embaixo do tapete

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Foto do author Gonçalo Junior
Atualização:

Os textos jornalísticos costumam citar a profissão ou ocupação de um entrevistado para orientar o leitor sobre a pessoa ouvida, como “o empresário beltrano” ou “o cientista político fulano de tal”. Dona Jacira não se encaixa nesse padrão. Ela é escritora, artista plástica, enfermeira, mãe dos rappers Emicida e Fióti e contadora de histórias, a maneira como gosta de se definir.

O jeito único de falar sobre as experiências da vida é um dos pontos interessantes da segunda temporada do podcast Café com Dona Jacira, lançado na quarta-feira, 25, em todas as plataformas de streaming. Aos 58 anos, Jacira Roque de Oliveira fala de ancestralidade, feminismo, maternidade, amadurecimento, autocuidado e o lugar onde vive, zona norte da cidade. Os seis episódios serão lançados semanalmente, sempre às quartas-feiras.

Dona Jacira lança a segunda temporada do podcast Café com dona Jacira Foto: Werther Santana/Estadão

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Mais que um convite, o nome da série resgata os cheiros na construção de nossa memória. “Quando percebo que alguém está refogando o arroz, aquela memória vem. Quando minha mãe levantava para fazer o café, a fumaça ia lá no meu quarto. Depois ela ligava o rádio, abria as portas, jogava milho para as galinhas. E a vida seguia”. O jeito como ela faz seus relatos é único, de uma maneira acolhedora, quase um cafuné de mãe e avó – a gente volta a falar sobre isso mais tarde.

Alerta de spoiler. No primeiro episódio, um dos temas é seu inconformismo com um destino já traçado para mulheres negras. “Eu gostava de escrever e ser reconhecida pela minha mãe. Se ela achava que gente preta não escrevia, tudo bem. Eu nem sabia qual era a minha cor. Mas quando ela trocava a palavra professora por doméstica que, ao ver dela, era o que nos cabia, eu ficava muito triste e arreliava para dentro”, diz a escritora.

“Sou uma contadora de estórias. Esse é meu dom e meu dom pode se transformar na minha profissão”. “Estórias” é a maneira como ela gosta de escrever a palavra. “Alguém me disse que é errado usar ‘estórias’ com ‘e’. Mas, se as estórias são minhas, eu também posso escolher a maneira como quero escrever a própria palavra”.

Sua intenção é fazer suas estórias chegarem às cozinhas, às mulheres que, como ela, vão fazendo mil coisas ao mesmo tempo. “Eu coloco o podcast na janela da cozinha e vou lavando louça. Não consigo fazer uma coisa só. Se eu sentar, quem vai cuidar das coisas?”.

Infância difícil e amadurecimento precoce

Antes de ser podcaster, Dona Jacira navegou pela literatura, com poesias, crônicas, histórias infantis e contos. O livro Café traz memórias da menina negra que convivia com três gerações de mulheres. Também é resistência. Nele, estão a infância difícil, a educação no convento, o amadurecimento precoce de uma criança que teve que ser mãe muito cedo e transformação da dor em arte.

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Dona Jacira e suas bonecas em sua casa, na zona norte de São Paulo Foto: Werther Santana/Estadão

O livro foi lançado pela LiteraRUA, coletivo de autores e produtores especializado em literatura negra, periférica e feminista, e o Laboratório Fantasma, empresa de moda e cultura gerenciada pelos filhos de Jacira, Leandro (Emicida) e Evandro Fióti. Além dos dois, ela tem mais duas filhas, Kátia e Katiane.

“A ideia surge com autores que se autopublicavam nas periferias. Compreendendo as dificuldades, tanto para os autores independentes como para o acesso dos leitores aos nossos livros, passamos a desenvolver todos os elos do mercado editorial. É uma livraria com um acervo que valoriza a bibliodiversidade, a cultura, as mulheres, a literatura negra, indígena e LBBTQIA+”, afirma Toni C., editor do livro ao lado de Demetrios Santos Ferreira.

Sonhos interrompidos estão sendo colhidos agora, diz autora

Na entrevista coletiva para anunciar o novo projeto, o Estadão pergunta sobre as razões da escolha de um veículo como o podcast, considerando que ela já se expressa em outras linguagens. “Em casa, eu não tinha televisão na infância. Nós sentávamos em frente ao rádio. Antes do noticiário, eram as radionovelas. Eu não entendia muito bem o que eram aqueles barulhos da tempestade e outros sons, mas eu pensei ‘eu quero ser isso aí. E aquele desejo ficou’”, confessa.

Outros sonhos também foram adiados, só colhidos agora. Na juventude, ela foi empregada doméstica quando queria ser escritora. Voltou a estudar aos 26 anos e se formou como auxiliar de enfermagem. No seu perfil, ela se apresenta como “formada em desenvolvimento humano”.

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Assim como o café, as memórias não são sempre doces ou quentes. A escritora desenvolveu uma doença renal crônica que a obriga a fazer hemodiálise há 24 anos. As cicatrizes nos braços atestam o tratamento. Transformou esse tempo em estudo e passou a ser especialista em alimentação saudável, outro tema frequente nas conversas.

O convívio com os livros também trouxe a consciência sobre as relações raciais e evidenciou que ela vem driblando o racismo ainda num tempo em que esse tema era colocado embaixo do tapete. Para cada pergunta, ela quase sempre cita um título diferente. Um deles é Amkoullel, o menino fula, do escritor africano Amadou Hampâté Bâ, que sempre lutou para que a tradição oral do povo fula fosse reconhecida como fonte legítima de conhecimento histórico.

Lugar de encontro, passagem e troca

A sala da casa da dona Jacira, local da conversa, está cheia, com gente até esparramada no chão. Não é falta de espaço, mas um sentir-se à vontade como poucos lugares permitem. A maioria é de jornalistas pretos e pretas. A casa também é um espaço de atividades culturais e atividades na horta, lugar de encontro, permanência, passagem e troca de conhecimentos ancestrais perto do Parque da Cantareira. Mas a escritora revela uma preocupação, quase uma mágoa. “Já consegui trazer pessoas da África para cá, mas não trouxe meus vizinhos”.

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As paredes são enfeitadas com as obras da artista que dialogam com outros povos e outros lugares. Emicida reconheceu essa similaridade quando esteve na África. “A primeira vez que foi para Madagáscar (país insular a sudeste da África), Emicida disse: ‘A senhora faz coisas que eles também fazem aqui’. “Isso é uma tecnologia ancestral que está além das estruturas da sociedade”.

É ali também onde são gravados os podcasts – a cadeira de gamer, com estofado verde, contrasta com os bordados ancestrais. Um das filhas, a advogada Kátia Roque de Oliveira, fez o roteiro. Já a edição foi feita por uma produtora de mídia independente.

“Fiquei chateada porque tinha um galo. Na hora da edição, eles me disseram que o áudio estava sujo. Não estava sujo, não, os áudios fazem parte da comunidade”. “Áudio sujo” é uma jargão da área de comunicação para dizer que uma gravação tem ruídos e interferências.

No final do encontro, alguém pergunta se somos obrigados a ir embora. Ganho um abraço na hora da despedida. Um abraço da dona Jacira é como um abraço da minha mãe, que já se foi, e de todas as sábias mulheres pretas que vieram antes da gente.

*Este conteúdo foi elaborado em parceria com a LiteraRUA, coletivo de autores e produtores especializado em literatura negra, periférica e feminista.

SERVIÇO

O podcast Café com Dona Jacira está disponível no Spotify, Deezer, Google Podcasts, Apple Podcasts (em breve) ou no agregador de podcasts de sua preferência.

Temporada: Episódios inéditos às quartas-feiras, às 6h, nos dias 1/11, 8/11, 15/11, 22/11 e 29/11.

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Créditos: Dona Jacira (Apresentação), Kátia Roque (Roteiro), Voz Ativa (Sonoplastia)

Criação: Produção Independente

Duração: Entre 17 a 25 min.

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